segunda-feira, junho 27, 2022

«A Eliminação», de Rithy Panh ou a utopia sangrenta dos khmers vermelhos

«Se és um libertário, se queres ser livre, porque é que não morres ao nascer?» Slogan Khmer, 1977

Há imbecis em todo o lado. Principalmente em intelectuais que escrevem para os jornais a troco de algumas prebendas sejam elas em dinheiro ou notoriedade no «Le Monde» como Alain Badiou, Edward Herman ou Chomsky para citar os mais conhecidos. Ou pior: por cumplicidade ideológica. Só que esta última pouco tem a ver com o comunismo ou coisa que o valha. Só que este slogan, repetido e expandido por muitos outros slogans completamente dementes tiveram consequências num povo inteiro, o khmer, ou melhor o cambojano, que entre 1975 e 1979, fizeram padecer em execuções sumárias ou à fome programada 1,7 milhões de pessoas. O seu objectivo, o objectivo do Angkar ou do colectivo 807 e principalmente do Camarada número 1, ou Pol Pot, era construir um 4 anos apenas uma pátria (ah, o nacionalismo!) de operários e camponeses. Evacuaram totalmente Phnom Penh, executaram os intelectuais, estudantes membros das profissões liberais, deslocaram em massa populações inteiras para as aldeias, criaram uma divisão entre «povo antigo» os da montanha e das florestas que conheciam um tipo muito particular de «comunismo primitivo» e o «povo novo» que em princípio era identificado como sendo os que tinham a influência da cidade, do pensamento burguês, da influência francesa ou americana. Quando os Khmers derrubaram o antigo regime corrupto foram recebidos com grande expectativa, embora se notasse já um autoritarismo singular que não permitia o contacto físico dos guerrilheiros com o povo que o vinha saudar. A partir daí, o Angkar (o comité central do PCK) foi dono e senhor dos destinos do chamado Kampuchea Democrático.

O autor é Rithy Panh, um cineasta premiado em Cannes, em 2013, com Un Certain Regard, mas foi com S21- A Máquina da Morte dos Kkmers Vermelhos, de 2003 que ele atingiu uma certa notoriedade que o levou à denúncia do verdadeiro genocídio do povo khmer. Para fazer desaparecer !/4 da sua população só com um método igual aos genocidas nazis. E é assim que Panh se senta, na prisão do Tribunal Penal Internacional (que até certo ponto foi vergonhoso) para entrevistar o Camarada Duch. Tenho de explicar: durante 4 anos do regime Khmer houve carrascos e o carrasco-mor era Duch. Panh (na ocasião, umjovem de 16 anos) passou 4 anos em várias situações de humilhações e violências indescritíveis: viu suicidar-se o pai, morrer de exaustão a mãe, as suas irmãs, um irmão e 3 sobrinhos de 3, 5 e 7 anos de idade através da fome. Viu morrer amigos em campos de arrozais. Nada que não saibamos de descrições similares noutras latitudes, infelizmente. Mas este livro tem um condão interessante: eu vi o seu primeiro filme há uns anos creio que na RTP2 e vi o camarada Duch que se ria bastante durante a entrevista, que assumia tudo o que se passava no campo de extermínio S21, mas que não viu nada, não ouviu os gritos dos supliciados, que cumpria ordens. Contudo, é diferente de Eichmann. Duch não é um burocrata. Duch era um assassino em nome da ideologia. Era a ideologia, melhor, os slogans que o comandavam ao ponto de enviar para execução familiares seus. Duch ri-se muito e exalta-se somente quando Panh lhe pergunta se a sua recém conversão ao cristianismo evangélico o vai salvar! A resposta é linear e mórbida: «Deus já me perdoou e, Sr, Panh, não brinque com a religião!» É evidente, para mim, que me passou ao lado estes pormenores no filme, onde há sempre elementos distractores, mas o livro, embora não estando muito bem escrito, mesmo com a ajuda de Cristophe Bataille, ajuda-nos a fixar momentos inesquecíveis e relermos pormenores que dantes não reparámos em imagens.
Uns dos momentos que mais me inquietou neste livro foi o facto de um único ténue protesto que nos foi dado a conhecer frente aos Khmers (com a devida retaliação a quem os fez) e devido à fome generalizada foi o recurso ao exemplo de Cuba e da China, países comunistas «onde não se passava fome e havia cuidados de saúde» e uma outra foi o facto de os torturados antes de serem executados terem de assinar a sua confissão que estavam ao serviço do KGB, da CIA ou do Vietname que o invadiu o Camboja em 1980, remetendo os khmers para a selva. Pol Pot morreu em 1985, em paz, numa aldeia do norte, em pleno «comunismo primitivo».
Quanto à ONU de Kurt Waldeim, um cretino que andou pelos Balcãs a exterminar guerrilheiros junto com o exército nazi, esse, assinou um relatório apresentado pelos americanos que afirmava que entre 1978 e 79 não teria havido uma única execução! As organizações independentes afirmam categoricamente que foi um ano terrível onde se poderiam contar mais de 500 mil vítimas das 1,7 milhões que o «regime» produziu! O Tribunal Penal Internacional assinou de cruz e o Camarada Duch e outros tiveram uma pena considerada leve. 

Publicação da Antígona, Janeiro de 2022