segunda-feira, outubro 11, 2021

Penúltimo Outono (3)

Estava cada vez pior. A vida, eu e a carestia. Marcelo apresentava um ricto estranho de desdém na televisão e eu também. Não tinha a boca ao lado, como ele, mas empenhava-me num sobrolho carregado e um esgar fatídico, daqueles que dão tudo para um único objectivo: ao contrário dele, a queda do fascismo. Este facilitava-nos a vida porque não dialogava com ninguém e a guerra continuava nas três frentes da porra africana em que o D. Henrique nos meteu 500 anos antes. Agora morríamos como tordos e perfilava-se a coragem derradeira pela pátria: a fuga para a frente, ou seja, literalmente e depressa para os Pirinéus! Claro que havia histórias horripilantes de gajos enregelados nos Picos da Europa e coisa e tal, alguns presos pela Guardia Civil, entregues à pide e lavados para Penamacor como desertores acompanhados de castigos terríveis em que os obrigavam a subir colinas com pipas de água às costas. Aliás, meio-cheios porque o balanço da carga forçava-os até ao limite da resistência humana. A porrada da pide naqueles tempos já não metia medo a ninguém. Agora era fugir porque já tinha 17 anos e em Novembro daria o meu nome na Junta de Freguesia da Sé Nova e o DRM chamava-me como ginjas. Vais para a tropa, que aqui é que se faz um homem, caraças. Ou queres ser maricas? Não me lembro o que respondia a estas invectivas filosóficas de alto coturno, mas não, não queria ser maricas, mas ser homem ao ponto de levar um tiro na testa, ou ficar ceguinho, ou sem uma perna, talvez o maricas fosse uma opção a considerar, já que os não queriam no exército, a bem dizer. Já na marinha e segundo um poema que eu tinha lido de Cesariny este axioma não era tão provável de ser demonstrado! (...)