Estava determinado. Não sei bem em quê, mas estava determinado. Na Clepsidra encontrava-me com os meus companheiros de luta, os imprescindíveis de que falava Brecht. Tínhamos tarefas no andar de cima que subíamos seriíssimos para ir para o policopiador e abrir o stencil azul, mais a tinta preta necessária e as resmas de papel branco, por vezes azul. Assinávamos como Cpael, acrónimo difícil de verbalizar, mas éramos já conhecidos pela malta do liceu. E provavelmente de outros liceus, porque alguns companheiros menos auspiciosos dos futuros radiosos pediam-nos para irmos lá nós que já estávamos mais «queimados» do que eles, virgens sedutoras da mole liceal por esclarecer gajo por gajo. Para isso estavam lá eles. Cheirou-nos a cobardia, mas as coisas são o que são e a mente humana já nos estava dissecada pelas leituras de Tolstoi, Dostoievsky, Roger Vailland, Aragon, Cholokov e o grande Gorki! Nada de novo, portanto. Tínhamos era de ter cuidado com as unhas. O negro da tinta do stencil entranhado nas unhas podia deitar tudo a perder e a pide sabia abrir-nos as mãos. Havia uma escala: unhas pretas significavam elaboração de stencil e comunicados, coisa não tão grave; já as pontas dos dedos, unhas e palma das mãos pretas era mais grave e significava sem dúvida pichagens nas paredes. Foi o nitrato de prata que levou a Eugénia à pide e muito teve ela de suar para dizer porque estava assim, suja. Como aliás era a alma dos comunistas e socialistas de todos os matizes embora não se mostrasse embebida em nitrato. Era perigoso comprar sprays, isto se os houvesse à venda, claro. Mesmo as frases pichadas podiam ter uma escala: «abaixo o governo» já não vendia nada, já «morte ao governo», «morte ao fascismo» ou «abaixo a guerra colonial!» ou «Vivam os povos das colónias!» podia dar uns anitos em Caxias. Tudo o que levasse «morte» na frase era pecado mortal (literalmente, claro), isto por um governo que matava tanto cá, como em África. Mas a veia pacífica da hierarquia da igreja gémea do governo, era desmentida pelo faduncho raivoso do macho encornado. A vida continuava serena, a energúmena.
As reuniões eram faladas em voz baixa. E essencialmente desenhávamos estratégias para a «agitprop». Era preciso convocar uma RGA para o pátio dos fumadores no intervalo grande da manhã. Lá se ia o meu pastel de carne na cantina, mas ao menos fumava e distribuíamos os comunicados. Estava tudo de acordo e havia uma ainda rivalidade calma entre os maoístas e nós. Sabíamos da União dos Estudantes Comunistas e o Lizardo era seu militante e controleiro para os liceus. Isso sabíamos, mas se nos perguntassem o que defendiam, tanto a UEC como o PC, éramos capazes de dizer somente que o objectivo era o derrube do governo e quanto ao resto, assobiávamos para o lado, que se fazia tarde. Mas a coisa estava a dar para o torto. A pide rondava já a Rua do Brasil e pensávamos que era por causa dos universitários e universitárias que tinham por lá quartos. Mas não. No Bairro Marechal Carmona onde vivia o Pinto Ângelo e o Sarmento também pontificavam os pides no seu Ford Escort. Tínhamos a mania de deixar rasto: colantes contra a guerra e carestia de vida nos postes de iluminação, comunicados no chão perto das paragens e, santa ousadia, uma vez lançámos um pano com o Che gravado a tinta preta atado a duas pedras que se enrolaram sem mais delongas nos fios eléctricos da Rua do Brasil, mesmo em frente à minha casa, o que foi de uma inteligência a toda a prova.
Como disse, a coisa adensava-se e as nuvens negras lobrigavam-se no horizonte. Acagaçado de todo, pedi ao Lizardo que me desse umas luzes sobre o que fazer se fosse interrogado na pide, isto se fosse apanhado em flagrante delito o que, devido à tal inteligência viva e afoiteza musculada que me era devida, era mais que certo acontecer. O Lizardo, rapaz de 69, aconselhou-me a falar com o Pena, outro rapaz da luta, mais experiente e que já tinha passado pelas malhas apertadas da polícia política: