domingo, outubro 03, 2021

A base da apresentação que antes de tudo seria um anúncio, mas nem tanto assim foi


Antes que tudo, um anúncio (lido no Liquidâmbar a 1 de Outubro de 2021)

Não se deve misturar surrealismo com academismo. Se o fizerem, o efeito imediato da cicuta é o menos mau se comparado com a lástima que será a infusão de arsénico num qualquer chá. O surrealismo foi um meu companheiro de longos anos passados em cafés, em bares, em sítios improváveis, tomados com estricnina, fumado a eito e partilhado verso a verso, imagem a imagem em janelas e vitrines chuvosas ou em verões escaldantes debaixo de figueiras e carvalhos ou, se não atreitos ao bucolismo (nada tinha de), em esplanadas ventosas com os pés ao alto para não nos enterrarmos em alcatrão quente. Esse enterro veio mais tarde, já não em pez, mas em lama algo lodosa.

Aí, nesses lugares probabilíssimos onde vivi com desespero feliz aninhava-me nas margens de rios dourados das fontes de Bagdade, alimentados por chuvas ácidas azuis de Berlim, por espremidas laranjas Vietname, onde peixes-voadores vinham sorver o oxigénio líquido dos hospitais, os salmões subiam pelas nossas coxas e nas paredes das galerias de arte, os cavalos loucos e ciosos galgavam as margens das estepes entre cães desamparados e gatos de olhos rutilantes de ódio cismático. Assim era o surrealismo sentido por mim. Em busca de derivas cadentes e incandescentes de desejo, esquadrinhava as lentes das cidades nocturnas fugindo ao dia que me dilacerava, adorando o sol e a morte que emanava. Os dias passavam-se na cadência de uma camioneta lenta, de um comboio de apeadeiros vazios e de boleias inúteis. As folhas contavam-se pelos livros que guardava e em algumas sentia com prazer estupendo os caracteres de tipos rugosos. 

Lido Helder e Cesariny, Pacheco e Oom, encontrava-os e encontrava-me em sigilo e cumplicidade. Surrealistas? Alguns nem tanto. Atravessavam-lhes o abjeccionismo. Surrealistas que não desejavam sê-lo. Abjeccionistas que não pretendiam a abjecção pela abjecção. Neo-realistas arrependidos, outros arreigados às comunidades. Os rótulos literários passaram-se para a reforma agrária e para os apartamentos citadinos. As armas eram reclamadas pelo Mário-Henrique Leiria. Nunca as usou, porque preocupado com o cão, presumo. Pouco me importaram estas tentativas de branqueamento capital ou de personagem. Continuava a lê-los como último recurso para uma vida que se queria vivida rápida e ferozmente, sem compromissos. Abandonei Deus? É possível, enquanto descobria outros enviados pelo surrealismo da casa, ainda assim próximo do cânone bretoniano, o tal papa laico. Sagir ou a deusa-mãe, Ísis e Osíris e a Metaciência de António Maria Lisboa, Milarepa de Lapa, Varuna de Manuel de Castro, Eros de Dacosta ou os deuses animistas de Seixas. Ter-lhes-iam sido fiéis estes deuses, estranhamente subsumidos nos seus pensamentos, nas palavras que diziam não serem sequer necessárias para ser Poeta? Seria mesmo verosímil a sua busca pelas forças do Caos em luta milenar contra os céus de mel e prazeres infinitos? A chamada dos deuses fez-se em vida destas personagens terrenas com Baal em luta contra Enkil, Varuna observando e incitando a desordem para convocar os deuses da ordem e do bem. Ter-se-ão dado conta da luta interior convocada por eles? O perigo iminente que os rondava?

Mais do que construírem as palavras e as imagens sob a batuta ortodoxa da metodologia automatista criaram a possibilidade de edificarem a República de Crianças, aquela que constitui o verdadeiro palco da crueldade, do amor, da verdade e dos jogos de guerra permanentes. Uma entidade indígena que não foi preservada pelos arqueólogos literários do costume, envoltos em cartografias manhosas, criadores de pequenas correntes de ar de que falava Helder, mas sim pela escolha límpida e cúmplice da auto-dissolução, pela vontade plenamente livre dos seus protagonistas.

Todos tiveram vidas trágicas, no sentido mais profundo da tragédia grega. Uma fusão de Diónisos com Afrodite e Eros, os deuses imoladores que menos mentiam e mais sentiam. E a maior parte deles pagaram com a existência em limite constante o desejo violento de uma outra vida. Esta terra não era para eles; demasiado mesquinha, feita de pides e informadores, magalas e marialvas, mulheres escravas e que gostavam de o ser, povo medroso, supersticioso e ritualista que fugia do comunismo e da democracia. Que idolatrava a pobreza e a castidade. Que poderia o poeta ser muito mais do que morrer abjectando tudo e todos? António Maria Lisboa, Manuel de Castro, Manuel de Lima, Pedro Oom, Mário-Henrique Leiria, António José Forte não morreram demasiado cedo. Pura e simplesmente não desapareceram porque não lhes deu para se prostrarem de deferência perante os vivos. Tentaram Paris e Londres, exigiam liberdade que cá não tinham e alguns acabaram a pedir sandes em Montparnasse para não morrer de fome, outros em minas de carvão na Checoslováquia, em navios de cruzeiro ou mercantes, outros adoeceram, enlouqueceram, empregaram-se e remeteram-se ao silêncio ou, pior, saíram de si próprios e não voltaram mais.

Acabado o Prec, a fase mais poética e insurrecional de que o povo português foi capaz (em muito esforço) nos meados do século XX, lá para 77, o surrealismo tornou-se-me mais distante. A provocação e a destruição de uma ordem fascista e abjecta deixou de existir e o sangue parou de correr na saudosa África. Disse o que queria dizer: abjecta. E, já muito antes, dei conta da dicotomia surrealismo/abjeccionismo tão caro aos debates áridos das academias que dizem desprezar trocadilhos nas palavras. Hoje o academismo «estuda», pomposo, o surrealismo rebaixando-o a «movimento» a «grupo» que os próprios rejeitaram.

Portanto, desde 1949, e para quem conhece a história surrealista, deparamos já com dissoluções e combates intestinos. A coisa assim foi até declararem, pela honestidade e frontalidade brutais que lhes são reconhecidas, que não haveria nenhum grupo surrealista, mas sim um conjunto de surrealistas que embora de iniciativas individuais os ligavam um fio de revolta e subversão, iniciado por manifestos comuns na década de 40 e 50.

Seja como for, devo-lhes a vida. Devo-lhes a palavra, a textura, a cor e o som. Apontaram-me as armas mais perigosas: as da subversão pelo amor e pela destruição. Não levantei os braços em rendição. Dispararam. Hoje, acertámos contas. Estamos pagos.

 António Luís Catarino

Coimbra, 19 de Setembro de 2021