quinta-feira, agosto 27, 2020

«O Ouriço e a Raposa», de Isaiah Berlin

 O Ouriço e a Raposa”: o livro mais importante de Isaiah Berlin é publicado  pela primeira vez em Portugal – Comunidade Cultura e Arte

Era uma vez um ouriço e uma raposa... este ensaio de Isaiah Berlin poderia iniciar-se assim mesmo, que não levaríamos a mal. Poderia tomar a forma de uma fábula, mas não é disso que se trata. É uma adaptação de versos de Arquíloco quando este afirma «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.» Quereis ser raposa ou ouriço? Aqueles que veem o mundo através de um princípio organizador único serão um ouriço. Raposas serão os que interpretam o mundo através de várias pontas e vários prismas. I.B. dá então um exemplo: como raposas estão inseridos Dante, Heródoto, Aristóteles, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce; ouriços, embora em graus diferentes, são Platão, Lucrécio, Pascal, Hegel, Dostoiévski, Nietzsche, Ibsen e Proust.

Para um liberal como Isaiah Berlin esta preocupação de catalogar personalidades tão ricas, de ambos os lados, não deixa de nos espantar e mesmo preocupar, pensando nós que esta necessidade de compartimentação intelectual, não se sabe bem porquê, pertenceria eventualmente à esquerda, traduzida do «gauche»  francês por canhestro, desajeitado, do italiano «sinistra», belíssimo termo que nos transporta a uma entidade suspeita de muitos males e a portuguesa «esquerda», esquerda que, até meados do século XX, ainda era conotada com o diabo, razão pela qual os canhotos eram obrigados na escola a corrigirem, por vezes à pancada, a mania estúpida de escrever sem ser com a mão direita! E, já agora, Lenine para quem o esquerdismo era uma doença infantil do comunismo, tipo sarampo ou escarlatina.

Mais nos admiramos com a prelecção de Berlin, considerada pelo The Guardian como o 28º melhor ensaio de todos os tempos (nada meigos!), quando este se debruça sobre o «Guerra e Paz» de Tolstói e sobre o autor, ele-mesmo. Tolstói não figura, se repararem naqueles rótulos, como raposa ou ouriço. Isaiah Berlin coloca-o num limbo afirmando que Tolstói era um ouriço que queria ser raposa, devido à sua visão unitária do mundo, mas com dúvidas imensas que o levavam a analisar tudo sob várias perspectivas. Até se compreende mas, ao afirmar que Stendhal era a «dívida» de toda a obra de Tolstói o que ele teria corroborado numa entrevista, porque não o colocou aquele como raposa? Mas a surpresa maior é que esta alocução, que teve vários títulos diferentes, críticas a rodos e contrariedades várias, e que nos apercebemos nesta edição, tem o sub-título de «Ensaio sobre a visão da História de Tolstói» e aqui, com a devida proporção, surgem tantas dúvidas quantas as que teve Tolstói durante toda a sua vida! Como se pode afirmar o positivismo de Tolstói no epílogo de «Guerra e Paz» que, como nos lembramos, é dedicada às questões históricas? Ora, como sabemos, o positivismo trouxe consigo algumas correcções necessárias às Ciências Humanas, mas limitou-se, em História, a uma descrição interminável de factos e acontecimentos datados, que teriam como protagonistas actores de vulto fossem eles somente reis, presidentes, ministros ou cabos de guerra. Quando lemos o epílogo da obra de Tolstói reparamos que nada disto é seguido optando este por descrever a História como uma sucessão de factos em que os agentes políticos ou militares nada mudam, nunca transformam nada de facto, julgando-se, ao mesmo tempo, donos do devir do mundo. Tolstói apresenta-nos a sucessão de acontecimentos históricos como sendo originados por forças ocultas, telúricas, criadas por uma mole imensa de vontades estranhas e que se conjugam aqui e ali numa forte torrente. Chega a desdenhar os grandes vultos do seu tempo, como Kotuzov, Napoleão, Alexandre, Catarina ou os Habsburgos que julgam poder mudar alguma coisa. Portanto, Tolstói positivista?

Há, contudo, outras afirmações que não são menos polémicas por parte de Isaiah Berlin. Já sabemos que ele era um liberal adverso de todos os totalitarismos. Se pensarmos que este ensaio foi escrito em 1953, oito anos após o derrube do nazi-fascismo em que os sentimentos antifascistas estavam muito vivos (mais do que hoje, diga-se), compreende-se que se possam ver teorias fascistas de um modo exacerbado, mas Tolstói precursor do fascismo indo buscar a Proudhon e a De Maistre as suas ideias não será um pouco demasiado? Mesmo que no fim de um capítulo do ensaio I.B. seja mais suave. Vejamos o que diz Berlin: «A analogia [com De Maistre] não pode, ainda assim, ser excessivamente vincada: é verdade que tanto Maistre e Tolstói atribuem a maior importância possível à guerra e ao conflito, mas Maistre, como Proudhon depois dele, exalta a guerra e declara-a misteriosa e divina, enquanto Tolstói a detesta e a considera, em princípio, explicável, desde que saibamos o suficiente acerca das muitas pequenas causas – o famoso «diferencial» da história. (...) A visão de Maistre é a de um mundo de criaturas selvagens que se atiram umas às outras sem dó nem piedade, matam por matar, coisa que vê como a condição normal de toda a vida animada. Tolstói está longe de tal terror, crime e sadismo, e não é, com a devida licença de Albert Sorel e Vogüé [estes verdadeiros arautos do fascismo moderno], em sentido nenhum, um místico: não receia questionar nada e acredita na existência de uma qualquer resposta simples – basta que não insistamos em torturar-nos a procurá-la em lugares estranhos e remotos quando ela está sempre à nossa frente.»

E as diferenças continuam por mais páginas a seguir a esta. Pergunta-se agora: de que vale levantar uma questão através de uma afirmação polémica, como exemplo «...seria Tolstói um seguidor de De Maistre [ou já agora de Bossuet] paladinos do absolutismo e seguidos por fascistas?», para depois passar o resto do ensaio (o 28º oitavo melhor de todos os tempos, repita-se!) a dizer o contrário e a sublinhar as diferenças? Será esta a verdadeira metodologia para um êxito ensaístico?

António Luís Catarino

Coimbra, 27 de Agosto de 2020