terça-feira, janeiro 22, 2019

O Museu dos «Descobrimentos» / 29


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Portugal foi um país esclavagista? Responder a isto nunca foi tão fácil para qualquer jovem que esteja a frequentar o ensino secundário e, creio mesmo, em patamares inferiores. Claro que Portugal foi esclavagista. Avancemos mais um degrau nesta confirmação: foi o primeiro país esclavagista, como gostam de lembrar os holandeses. Bom, este debate na sociedade lusa nunca foi tão ríspido como hoje. Como começou não sei bem, mas, há uns meses, o SOS Racismo quis levantar a questão da escravatura negra e mostrar-se contrário à abertura do uma pretensa construção de um «Museu dos Descobrimentos» exatamente onde se encontra uma estátua do nosso literato, filósofo e missionário jesuíta Padre António Vieira. Porquê fazer-se um protesto a um padre que morreu no século XVII, nascido a 1608 e levando com a vossa ocupação castelhana uns anos até ir para o Brasil, onde morreu na cidade de S. Salvador da Baía? A polémica é esta: sendo António Vieira contra a escravatura e escrevendo-a em cartas para vários reis, polemiza-se que este só era contra a opressão contra os ameríndios, ignorando e até favorecendo a escravatura dos negros que vinham de África no comércio triangular onde assentou o capitalismo nascente. Sabemos que foram milhões de negros que foram empregues em sanzalas na extração de cana de açúcar e nas minas e que tiveram como destino o Brasil. Ora, sendo esta uma verdade, o dito protesto chamou a atenção oportunista e simplória de nacionalistas de cariz salazarista que rodearam a estátua do pobre Vieira com as suas saudações de braço estendido. A extrema-direita a ler um filósofo que não o do pobre intelecto do Gobbels? Não acredito sequer que algum tenha lido qualquer letra escrita por Vieira, mas enfim, a polémica arrastou-se até hoje e ainda perdura agora com o nome a dar ao tal «Museu dos Descobrimentos». Deverá ser o museu da «expansão», das «viagens» ou mesmo da «escravatura». Fala-se mesmo da possibilidade de simultaneamente ao eventual museu encarar-se a hipótese de uma estátua a lembrar este passado obscuro da nossa história pátria. Não ironizo. Concordo com esta última proposta e aceito a ideia que nos «esquecemos», há demasiado tempo, do que fizemos em África até ao século XX. No meio desta polémica houve quem lembrasse que a escravatura até ao século XIII/XIV era essencialmente branca. Daí o nome de escravatura ter como raiz a palavra «eslavo». Os árabes sempre praticaram a escravatura eslava, branca, até à escravatura negra ser muito mais rentável; é um facto e desde o Império Romano. O reverso da medalha é que os que defendem que «não temos de nos envergonhar do passado» (que fiz eu de mal?) afirmarem que os negros faziam já escravos entre as diversas tribos. Ora, é só uma questão de escala? Fazer 40 prisioneiros de guerra e vendê-los como escravos é o mesmo do que se escravizar 9 milhões? Antes o suicídio, como Vieira afirma nas suas cartas, aquele em que tribos inteiras de ameríndios tupis ritualizavam a morte em recusa ao «tripalium» raiz da palavra «trabalho». Pior que tudo, na minha modesta opinião, não é a existência desta polémica que até tem razão de ser. O problema é que a maioria da opinião pública e publicada prefere ainda seguir a filosofia de Gilberto Freire, brasileiro e fervoroso apoiante do Estado Novo brasileiro e português nos anos 40, que dizia que os portugueses «ao contrário de outros povos» (seria uma referência a Espanha? À Bélgica? À Grã-Bretanha?) eram naturalmente propícios à miscigenação e ao contacto amigável entre os povos! Ora, acreditem, que isto não é verdade e, se o foi nalgum lado do Império, aconteceu por falta de mulheres europeias numa população pequena como a nossa; se aconteceu miscigenação foi à força da lei, ou pelos direitos próprios, não escritos, de se ser branco. Bem vistas as coisas, não nos livramos tão depressa da banalização da escravatura; nos manuais escolares ao responder-se à questão «Quais os produtos que vinham de África?» os nossos jovens aprendem a dizer «malagueta, marfim, ouro e escravos»! Como se fosse tudo igual, não é?


António Luís Catarino, 24/07/2018