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segunda-feira, junho 27, 2022

«História da Menina Perdida», Vol.IV, Elena Ferrante

 


E é isto: a saga chegou ao fim, com alguma pena minha que não me importava nada que continuasse. Mesmo que a parte final do livro se arraste um pouco em descrições psicológicas de que já tínhamos pressentido e (re)conhecido em volumes anteriores. Mas o mais interessante deste volume é não só a separação, muitas delas bem violentas, das famílias daquele bairro velho de Nápoles, mas igualmente a «separação» do povo italiano como um todo. As grandes famílias ligadas à intelligensia política caíram como um castelo de cartas que julgariam sólido na sua base. A corrupção era o mote, não só dos políticos, mas de juízes, procuradores, polícias, intelectuais. Tudo arrasava o Estado, servido logo ao pequeno-almoço para ser esbulhado. Mas também a esquerda caiu enredada na sua teia, dividida, arrependida, subserviente ao novo poder dos «novos» partidos que afundam ainda hoje a Itália. A violência, essa, continua sobre novas realidades, com leis e penas incompreensivelmente gravosas. A classe operária negociou a «pace» através de um reformismo que julgava ser a única saída. Não o foi. Não será nunca.

«Eram anos complicados. A ordem do mundo em que  nós crescêramos estava a dissolver-se. As velhas competências devidas a um longo estudo e à ciência da linha política certa pareciam, de repente, um modo insensato de passar o tempo. Anárquico, marxista, gramsciano, comunista, leninista, trotsquista, maoista, operaísta, estavam rapidamente a tornar-se rótulos retrógrados, ou pior, um estigma de brutalidade. A exploração do homem pelo homem e a lógica do lucro máximo, que antes eram consideradas uma abominação. tinham voltado a ser, por toda a parte, as bases da liberdade e da democracia.»(pág.376). 

E entretanto, toda a gente ia parar à prisão, cujas portas se abriam à repressão brutal e à discricionariedade da polícia e da «justiça». Bastava ser amigo de um «terrorista» e passava dois anos na cadeia para averiguações: Nadia, a «filha-família» de intelectuais de renome de Itália e florentinos (nos dois sentidos) e que tinha entrado nas Brigadas Vermelhas, cujo pai influente tinha sido apanhado também ele pelas teias da corrupção, denuncia Pasqualle das BV por crimes que fez e que não fez, a troco de uma redução substancial da pena. A partir daí lista nomes já por vingança, por invejas ou para pagar uma afronta. Denuncia outros amigos como Enzo e Antonio Pannucci que nada tinham a ver com as BV ou a Prima Línea. Os irmãos camorristas Sollara são mortos em frente à Catedral sem que ninguém visse quem foi e embora tenham dito que não tinham passa-montanhas, a heroína corroía os jardins de Nápoles, a filha de Lila foi raptada pelos Solara e passados anos nada se sabia dela, a carreira literária de Lenú tem outro alento e a vida continua, violenta, brutal, tanto no ódio, como no amor. No fim Elena Ferrante dá-nos conta da metáfora que liga a Praça Carbonaria de Nápoles com toda a Itália. No meio do lixo, de animais mortos de cadáveres insepultos, de legumes podres, lutam jovens até à morte e pela navalha e pela honra. Morre-se um pouco sem saber o porquê. 

Nada disto, todavia, me tenta saber quem é de facto Elena Ferrante. Não a procuro na net. Não me interessa nada. Que é uma boa escritora, é-o sem dúvida.

terça-feira, junho 14, 2022

«História de quem vai e de quem fica», Elena Ferrante, vol.III

 

«Na fábrica - percebera logo isso - a grande fadiga fazia com que as pessoas desejassem foder, mas não com a mulher ou com o maridos nas suas casas, onde regressavam extenuadas e sem desejo, mas ali, no trabalho, de manhã, ou de tarde. Os homens davam apalpões sempre que tiham oportunidade, faziam propostas ao passar; e as mulheres, sobretudo as menos jovens, riam-se, roçavam neles o peito grande, apaixonavam-se, e o amor tornava-se uma diversão que atenuava o cansaço e o tédio, dava uma impressão de verdadeira vida.» (pág.82)

Os Anos de Chumbo:
«Ah, sim, antifascismo militante, nova resistência, justiça proletária, e outras fórmulas a que ela, que por instinto sabia esquivar-se à cassete do partido, era sem dúvida capaz de dar consistência. Imaginei que aquelas acções fossem obrigatórias para entrar, sei lá, nas Brigadas Vermelhas, na Primeira Linha, nos Núcleos Armados Proletários. Lila desapareceria do bairro como já fizera Pasquale. Talvez fosse por isso que tentara entregar-me Gennaro, aparentemente por um mês, mas na realidade com a intenção de mo dar para sempre. Nunca mais a veríamos. Ou seria presa, como acontecera aos cabecilhas das Brigadas Vermelhas , Curcio e Fransceschini. Ou escaparia a todos os polícias e à prisão, fantasiosa e temerária como era. E quando a cosa grande se realizasse, ela reapareceria triunfante, pelas suas proezas, com indumentária de chefe revolucionário, e dir-me-ia: tu querias escrever romances, eu fiz o romance, com pessoas de verdade, com sangue de verdade, na realidade.» (pág.243)

quarta-feira, maio 25, 2022

«A História do Novo Nome», de Elena Ferrante, vol.II


Segundo volume da saga de Elena Ferrante iniciada com «A Amiga Genial». Este «A História do Novo Nome» cuja acção se desenrola em volta da vida de duas personagens femininas, Lila e Lenù, não é mais do mesmo. Trata-se do amadurecimento natural das duas amigas numa Nápoles atrasada, dialectal, sofredora com domínios vários, entre os quais sobressai o domínio masculino, violento, machista, aceite por quase toda a sociedade do sul de Itália. Um país que mal saído da guerra e das suas misérias e destruições, encalha agora nas tradições seculares, familiares em que as principais vítimas são as mulheres. Os anos 60, neste sul muito particular, não se adivinha minimamente a chamada libertação feminista. Parece, por vezes e pela escrita de Elena Ferrante, que há uma reacção brutal a que isso aconteça, mesmo protagonizada por muitas mulheres. 

Tanto Lenù, como Lila crescem, neste volume do livro. Com ele, assiste-se não só à descoberta do corpo e do sexo, do desejo também, mas igualmente à diferença social entre as várias personagens. A luta de classes do pós-guerra não é aqui esquecida, antes pelo contrário, todas as contradições são expostas claramente pela autora, entre a democracia cristã ganhadora e o forte partido comunista italiano, dividido em facções estalinistas, social-democratizantes ou trotsquistas. 

Pouca mobilidade social existe aqui. O seu elevador funciona mal. A existir ou é pelo casamento (Lila) que se transforma numa cilada cruel, com espancamentos logo no seu dia inaugural, ou pela universidade (Lenù) e mesmo aqui, depara-se com um nepotismo e uma campânula social que bloqueia uma ascensão merecida. Mesmo quando inicia a publicação de um romance por uma conceituada editora milanesa é por interposta influência de uma professora universitária, mãe do seu namorado que também ele rapidamente sobe na carreira universitária como assistente, tal como a sua irmã e pai catedrático todos da Universidade de Pisa. Elena Ferrante, lembra-nos sempre que Lenù é oriunda de um bairro pobre de Nápoles, que esconde a sua origem no incómodo que sente quando a mãe a vai visitar à universidade onde se encontra doente ou quando esconde o seu dialecto napolitano. Essa contradição é vivida intensamente quando se aproxima das suas origens através de uma Lila caída em desgraça e tornada operária por sobrevivência.

Há, contudo, nos dois volumes que li até agora, uma questão incontornável e por vezes inquietante: a do comportamento da mulher. Elena Ferrante consegue entrar no âmago da psicologia feminina como eu não consegui ver até hoje em literatura contemporânea e muito menos quando são homens a tentar decifrá-la e escrevê-la. Lembro-me de algumas passagens de livros que agora me dão vontade de sorrir e pensar quão longe, alguns homens, estão de compreender atitudes de mulheres adolescentes ou mais maduras. Aviso-vos amigos: nem sempre o que parece é e o que se descreve, de um modo magistral, em simples encontros entre sexos já foi passado, vivido por nós todos. E dá-me ideia que pensámos tudo ao contrário... é esta a importância de Ferrante, uma observadora implacável de todo o comportamento humano em que nos vemos e revemos. É isto que faz a boa literatura.

quarta-feira, março 30, 2022

« A Amiga Genial », Elena Ferrante

 

Relógio D'Água, 1ª ed. 2014, 10ª ed. 2022

Escrevo estas notas sem ter lido nada sobre Elena Ferrante. Sei que é um pseudónimo de alguém que não se quis identificar e que escreve torrencialmente e bem. Para mim isso basta. Não acredito que ter escondido o seu nome e recusado a dar qualquer entrevista (creio que até hoje) tenha sido uma montagem publicitária. Da sua editora não digo nada, mas dela não acredito, visto que descobrir quem era num mundo de vigilância capitalista era uma questão de tempo, o que tornava o exercício de Elena Ferrante completamente pueril. O que me leva a dizer isto? Basta ler o que escreve e como escreve. O modo desprendido, autobiográfico, frontal, quase brutal, com que nos conta as suas memórias não se enquadra numa pessoa sôfrega de popularidade e de dinheiro. E foi o dinheiro dos direitos de autor que estavam publicados no relatório de contas da editora que se descobriu, paradoxalmente, quem ela era.

Estamos nos finais dos anos 50 em Nápoles, numa cidade com feridas abertas da guerra e do fascismo, e onde duas miúdas crescem num bairro pobre, onde se cruzam proletários, pequenos comerciantes em busca de algum lugar ao sol numa Itália a sair da miséria e camorristas. Pode-se contar pelos dedos das mãos as vezes que Elena Ferrante, em todo o seu livro, recorre ao nome de Camorra, mas ela está lá, exerce o seu poder real, nas relações que estabelece com todo o bairro napolitano. De um modo ou de outro, as duas jovens Elena e Lina (Lila) desenham uma amizade que perdura em todo o livro. O que é estranho é que não existe na narrativa uma vontade férrea de sair do bairro onde se confrontam todos os tipos de violências. A ténue possibilidade de mobilidade social vem com a escola, ler, escrever, contar, conhecer línguas que permitam não propriamente fugir dali para fora, mas controlar o que há de mais podre nas relações sociais sempre tensas e prontas a explodir. Um dos trechos mais significativos do que acabei de escrever vem pela voz de Lila, em dialecto napolitano a uma invectiva de Elena (Lenù) para voltar ao estudo:

«(...) Tu ainda perdes tempo com essas coisas Lenù? Nós andamos a voar sobre uma bola de fogo. A parte que arrefeceu flutua sobre a lava. Nessa parte construímos edifícios, as pontes e as estradas. De tempos a tempos a lava sai do Vesúvio, ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo o lado, que nos fazem adoecer e morrer. Há guerras. Há por aí uma miséria que nos torna a todos cruéis. A cada segundo pode acontecer qualquer coisa que nos faz sofrer de tal modo, que não há lágrimas que cheguem. E tu o que fazes?  Um curso de Teologia em que te esforças por compreender o que é o Espírito Santo?» Mais tarde Elena vai escrever uma dura discussão com o professor de Teologia que a expulsa da aula e cujo resumo escrito do acontecimento irá ser publicado por uma revista comunista de Nino Sarratore.

Mas o livro é muito mais do que isso, como é evidente. O próprio crescimento de duas jovens que querem ser livres e encontram caminhos barrados pela tradição napolitana e por múltiplas barreiras de índole social, intelectual e sexista é descrito de uma forma pouco experimentada em literatura. Isto porque o leitor intui a verdade, a realidade, que está por detrás dessas experiências muitas delas traumáticas. No fundo, acabando o livro, fechando-o e pensando quando se atreve a continuar a saga aberta por este «A Amiga Genial» poderá rever a sua própria experiência; a Nápoles de 1959, liberta da guerra e do fascismo não é assim tão diferente do Portugal desses anos que se preparava para uma longa guerra de 13 anos e que continuava com o fascismo caseirinho e mesquinho. Mas quotidianamente violento, sem dúvida. Sem camorra, mas com bufos, a Pide, a Legião e um machismo quase sempre brutal que emergia a todas as horas, em todos os lugares. Basta que a memória não nos traia e nos conduza aos anos 60, éramos nós ainda miúdos. E há coisas que não se esquecem nunca. Acabo com uma exclamação significativa de Lenù em diálogo com a sua antiga professora Oliviero:

«''Sabes o que é a plebe?'' ''Sim, professora.'' Naquele momento eu soube o que era a plebe, com muito mais precisão do que quando, anos antes, ela mo perguntava. A plebe éramos nós. A plebe era aquela que luta por comida e vinho, aquela altercação sobre quem é que devia ser servido primeiro e melhor, aquele chão sujo que os criados de mesa pisavam para a frente e para trás, aqueles brindes cada vez mais ordinários. A plebe era a minha mãe, que tinha bebido e agora estava encostada ao ombro do meu pai, que estava sério, e ria-se, de boca escancarada, das alusões sexuais do comerciante de metais.»