domingo, janeiro 28, 2024

«Deus tem Caspa», Júlio Henriques

 

Antígona, 1993, 2ª edição revista e aumentada. Apresentação de Alice Corinde
Um dos grandes libelos escritos contra o estado em que estão as coisas desde 1988 (mais ou menos), esta 1ª edição do «Deus Tem Caspa» de Júlio Henriques. A Antígona, a quem lhe deve muito pela colaboração que manteve com esta editora (e não foi a única, diga-se), já vai na 3ª edição e esgota sempre.

Verrinoso, intratável, irrecuperável, irónico até doer, Júlio Henriques percebe que povo temos, as suas idiossincrasias, as contradições e a miséria intelectual em que  caiu após um surto de febre facilmente debelável logo na jura à Constituição de 1976 e abandonando todas as múltiplas possibilidades de ser livre. Um país em que mandassem os produtores era bonito de se ver, mas o futebol, a pátria e a zona franca de Fátima levaram a melhor por obra, graça e firme vontade do povo português, nunca dado a grandes bodas com as revoluções. Para isso, usou o parlamento e a democracia liberal que vai de crise em crise até à vitória final, que, entretanto, se vai pondo a milhas do desiderato da população democrática e bem comportadinha., tadinha. Entregou-se igualmente a Deus que, como se vê, tem posto o planeta, e dentro dele o país, em condições de prosperar e encontrar finalmente a paz.

Através de Elias Eupróprio, feito guia-intérprete de Portugal também ele próprio, vai conhecendo a cidade de Coimbra metáfora e alegoria bastante para nos encontrarmos o verdadeiro ethos da nobreza e jactância bendita do povo português. Após, um prefácio de Alice Corinde a abrir as hostilidades e realçando a costumada obediência lusa, entremos em alguns trechos de «Deus tem Caspa» esperando que compreendam que o livro é muito maior do que vos mostro aqui. O critério é meu, portanto:

«(...) Graças ao tecido empresarial, a juventude escolar existe, e os executivos daquele, a quem não hesitaremos chamar Executivos de Deus, muito têm feito para promover tudo quanto é necessário promover. É graças a eles que existem as academias, sendo a de Coimbra tão-só a mais vetusta. Cada qual com os seus trajes particulares, cada qual com as suas praxes próprias [...], mas tudo isso sempre adequado às exultantes e adubáveis realidades do Ensino Sôprior. Daí a cor negra dos trajes e sua modelar inspiração nos seculares hábitos das igrejas: vão-se umas batinas, é certo, mas outras as renovam.(...)» (pág.69)

Mas, após umas aventuras no sul em autocaravana, Elias Eupróprio e mais umas companhias, e porque a chuva começava a cair teimando em terminar o estio, rumam a Coimbra:

«Como os três conduziam, a viagem apresentava-se fácil. Foram dilando um pouco, por aqui e por ali, chegando deste feliz modo a Coimbra, Portugal, com massa bastante para passarem uns tempinhos calmos. Nenhum deles conhecia a cidade; Elias ouvira falar dela, vagamente, como de um sítio sem grande interesse, e foi por essa razão, justamente, que lá decidiram ficar, pensando ser interessante conhecerem uma coisa assim.
Confirmaram-no, de resto, rapidamente. Aquele burgo era de facto uma das coisas mais ininteressantes que já tinham podido topar. Deambularam por cafés, por bares e por buátes, deslocaram-se a algumas residências estudantis e a vários departamentos académico-desportivos, e em todo o lado, harmoniosamente, se confirmava, com dados bastante mais precisos, a vaga informação inicial de Elias. (...) Que admirável era aquela pasmaceira, e a célebre ''mediocritate'' dos estudantes, tão cantada...» (págs.74/75)

«Segundo uma já ilustre e ruidosa multidão de enciclopédias de Cultura em Geral e uma insigne cópia de Obras Turísticas em particular, o português é triste. Inesgotável tema, por certo, cuja trágica trama pôde ao longo dos séculos tecer o oculto tecido do fantasma nacional, que Deus e a Democracia guardam em sua santa e fremente glória. Inquebrantável, rijíssimo tema, por si só lembrando a têmpera feral do ferrete luso! Que o não tema pois quem a ele se abalance, e lhe não falte ar e vinho, eis os votos sinceros e apaniguados deste que assassina quem o contrário sustente a bife da vazia (...)» (pág.105)

Se algum dia (feliz) conseguirem ter este livro entremãos não percam o conto «Lentes», cujo protagonista continua a ser Elias Eupróprio que em longo passeio por Coimbra e no Jardim Botânico encontra uma batata que lhe repetia: ''Fala-te um lente, meu rapaz. Escuta-me e terás uma carreira brilhante e assegurada, deslocações ao estrangeiro com tudo pago e uma bolsa para investigação da Fundação Gulbenkian''. Escusado dizer que o encontro com um tubérculo não impedia que a voz viesse lá do alto. Depois de muito deambular por Coimbra, pela Baixa, pelo referido Jardim Botânico, tendo-se cansado no Jardim da Sereia, passeado pela Praça da República, pisando o solo de Celas, eis que Elias nota que a voz do lente se transformou em 10 volumes da Enciclopédia Larousse-Selecções cuja definição de lente o exaltou. Dizia:

«''Os lentes, contrariamente às lentes, não têm uma vida sexual digna de nota, se bem que, pela razão extraordinária de serem lentes, isso constitua, ipso facto, uma particularidade digna de estudo. Os seus cuidados são absorvidos na busca de alimentos espirituais apodrecidos, que diligentemente absorvem com o fim abnegado de os servirem, depois de mastigados, aos seus sectários, a horas certas. São abundantes na região, mas a sua caça é expressamente proibida; as multas podem ir até 1500 escudos.'' Elias sentiu então uma sede atroz e uma fome atroz. Volveu os olhos para baixo, para a cidade cheia de automóveis e de moscas, e transformou-se em merda.» (pág.144)

O país, Coimbra, é também isto, talvez mais que isto, talvez ainda menos que isto. Na ocasião, nos anos 80, no dealbar de uma época fugaz de alguma rebeldia criadora em Coimbra, que Júlio Henriques também conheceu, já se previa a aceleração da decadência da cidade e a proximidade do cavaquismo que a moldou, tal como ao país inteiro, de muito dinheiro, pez, alcatrão e betão armado, materiais imprescindíveis ao capital(ismo). Sendo assim, fiquem assim com ela e com ele tal como está. Ou pior.

 Antígona, 1993, 2ª edição revista e aumentada. Apresentação de Alice Corinde