sexta-feira, junho 23, 2023

«Outono Alemão», Stig Dagerman

 

Antígona, 3ª ed. 2020. Tradução, introdução e apresentação de Júlio Henriques. Capa de Gonçalo Duarte

Stig Dagerman escreve este livro em 1947 com apenas 24 anos. Sueco, tem uma vida tramada
desde miúdo sendo educado por avós, já que nunca conheceu a mãe e o pai. Anarquista, extremamente humano, suicida-se contudo aos 31 anos, em 1954. Deixa vivas impressões nos seus livros acerca da existência da humanidade numa época de guerra e principalmente no pós-1945 quando se jurava a pés juntos que as guerras teriam acabado de vez. Algo me diz que Dagerman estava longe de acreditar nisto.

Não foi fácil certamente, para Stig Dagerman, escrever o que escreveu acerca de uma Alemanha derrotada, ocupada e violentada nos últimos dias do nazismo e após o suicídio de Hitler, Nuremberga e a desnazificação levada a cabo pelos vencedores. Isto em 1947, quando estava ao rubro o sentimento de ódio pelos alemães a quem acusavam de condescendência geral, quando não cumplicidade para com a violência e horrores nazis. Dagerman tenta compreender, percebe aqui e ali o que levou quase um povo inteiro a jurar lealdade até à morte a um Führer (não a uma constituição que o III Reich nunca teve) e o ter levado a declará-lo mesmo tendo sido obrigado nos últimos dias a defender uma pátria já exangue e em derrota total. Nos pequenos julgamentos de desnazificação realizados pelos ingleses e americanos aos colaboradores das SS, das SA ou do NDASP, estes não se arrependiam, pura e simplesmente diziam que tinham «jurado lealdade» pelo que não conheciam outra maneira de o evitar. Stig Dagerman adivinhou aqui uma das tragédias que assolaram o povo alemão, alguns culpados, outros nem tanto, outros (principalmente o peixe graúdo dos nazis) aproveitados para o funcionalismo da nova social-democracia e da democrata-critã CDU.

Júlio Henriques, num apontamento final sobre Stig Dagerman, dá-nos uma espécie de epitáfio escrito por este último, num esboço de um romance (O Viajante, de 1951): «Deixo simultaneamente sonhos imutáveis e ligações inconstantes. Deixo uma carreira promissora que simultaneamente me prometeu o desprezo por mim mesmo e a consideração geral. Deixo simultaneamente uma má reputação e a promessa de uma reputação ainda pior ainda. Deixo uma centenas de milhares de palavras, algumas escritas com prazer e a maior parte escritas com tédio e por dinheiro. Deixo uma situação financeira miserável, uma posição hesitante perante os problemas do nosso tempo, uma dúvida que já serviu mas de boa qualidade, e a esperança duma redenção. 
Levo, na minha viagem, um conhecimento inútil do globo uma leitura superficial das filosofias e da terceira via, um desejo de extinção e a esperança de uma redenção. Levo, ainda, um baralho de cartas, uma máquina de escrever e um amor desgraçado pela juventude europeia. E levo, finalmente, a visão duma pedra tumular que se ergue no deserto ou no fundo do mar com a seguinte inscrição: 

«Aqui jaz/um escritor sueco/que sucumbiu por nada/o seu crime: a inocência/esqueçam-no muitas vezes.»

Stig Dagerman não tem grandes ou nenhumas expectativas sobre a capacidade de a humanidade fazer o bem, principalmente quando esta se enquadra em instituições burguesas do Estado e do liberalismo capitalista. Sabe do que é capaz e nota-o no seu olhar perspicaz de jornalista e escritor quando conhece in loco a Alemanha após a II Guerra Mundial e o sofrimento do povo alemão, que teve  a ver mais com vingança inútil, como de rapina sem limites. Mais a mais, quando ele observou que essa mesma rapina e exploração atingia as classes mais desprotegidas e sem crimes nazis, enquanto os ricos e os membros do partido nazi se safavam e nada lhes faltava. É claro que na campanha eleitoral de 1946, na Alemanha, os partidos burgueses negavam veementemente a existência de luta de classes. Pudera...

Deixo aqui registado um dos trechos mais significativos e também mais dilacerantes de «Outono Alemão»: «Que distância haverá entre literatura e sofrimento? Será ela função da natureza do sofrimento, da sua intensidade ou do espaço que os separa? A obra literária estará mais próxima do sofrimento que causa o reflexo do fogo ou daquele que provém do próprio fogo? Exemplos imediatos, tanto no espaço como no tempo, mostram existir relações praticamente directas entre a literatura e o sofrimento remoto, fechado, sendo porventura possível afirmar que o facto de sofrer com os outros constitui uma forma de literatura ardentemente em busca das suas palavras.(...)». (pág.132)

Em cada linha de «Outono Alemão», Stig Dagerman partilha desse sofrimento, não tanto para com os alemães que eram, em última análise, os «culpados» de exercerem sofrimento aos outros povos dominados, mas pelo absurdo do sofrimento de homens, mulheres e crianças baseado na guerra em bombardeamentos a cidades onde a temperatura atingia os 1000 graus centígrados, na vida permanente em caves húmidas, na morte pela fome e tuberculose até meados dos anos 50, na prostração psíquica de seres humanos que viam os seus entes queridos, famílias inteiras a soçobrarem em menos de uma semana, a serem obrigadas a roubar, a matar inclusive, a prostituírem-se para sobreviver. Tudo isso, Dagerman observou, sentiu talvez como nenhum outro jornalista ou escritor da altura, também não isentos de culpa acerca da imagem que davam dos próprios alemães. É dele esta ideia transcrita em «Outono Alemão»: quando se pergunta a um alemão, ou alemã, com fome e desprovida de qualquer bem material ou de afecto, se vivia melhor no tempo de Hitler, a resposta provavelmente não seria aquela que o jornalista queria ouvir; mas é esse mesmo jornalista que vai escrever no seu artigo que o amor a Hitler ainda perdura na Alemanha!