domingo, janeiro 26, 2020

Pascal Quignard e «A Ocupação Americana»

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Pascal Quignard é um autor francês ainda pouco conhecido em Portugal. A Deriva editou-o, em 2013, com «Um incómodo técnico em relação aos fragmentos» traduzido por Pedro Eiras. É um autor desconcertante no sentido em que, dele, é melhor não esperarmos a «ordem natural das coisas» de um romance comum. De facto, fragmenta-o em relações, em épocas, em idades dos protagonistas, enquanto nas poucas páginas do livro se vão desenvolvendo atitudes e pensamentos de densidade psicológica óbvia. Pascal Quignard é um grande escritor e mostra-o neste «A Ocupação Americana», numa edição de bolso da Seuil de 1994, que encontrei num alfarrabista e antiquário suíço por um preço incrível. Vim com um saco cheio. Obrigado, Monsieur Bloch.

A França após a guerra de 1945: um período muito pouco conhecido e, talvez, um tema ainda fugidio. Lê-se que foram 75 mil os fuzilados por colaboração com os nazis. A vida quotidiana passava algumas dificuldades normalmente adormecidas pela ajuda do Plano Marshall. Mas ainda assim, a vida era difícil. Os costumes não mudaram muito desde antes de 1939. Os mais velhos e também a sua juventude continuavam, imperturbáveis, o seu quotidiano. Mantinham-se com os mesmos temas escolares, com a religião presente em todas as famílias, a cultura francesa dos liceus e faculdades não tinha sido esquecida e continuava-se a apresentar os mesmos autores de sempre, quer na literatura, quer na canção ou teatro.

Dois jovens, Patrick e Marie-José, estão ligados desde a sua infância mais remota. A amizade junta-os naturalmente, até à descoberta gradual do corpo de cada um com um primeiro beijo na boca, com umas festas mais arrojadas, e mais tarde, na adolescência e no liceu, com a necessidade premente de sexo.

Entretanto, os americanos assentam arraiais na base militar de Meung onde vivem os jovens. Os americanos chegam com o jazz, com as Levi´s, as Coca-Colas, os grandes Thumderbirds, Buicks, blusões pretos e costumes sexuais demasiado abertos para a velha vila francesa, bem espelhados no comportamento das filhas dos oficiais americanos da base. Os cafés aderem aos hambúrgueres e ao whisky bourbon. A cerveja Budweiser corre. Mas o racismo e refregas entre soldados brancos e negros não passam despercebidos. A segregação não é de imediato compreendida na pacata cidade francesa, mais até pelos jovens franceses que aderem vorazmente ao jazz onde tocam militares negros e que se tornam amigos. Frequentes vezes os negros são expulsos nos lugares mais centrais da cidade, por militares brancos alcoolizados.

Marie-José quer o corpo de Patrick, mas o medo de engravidar é maior que dar início a uma experiência sexual total. Vai recusando a formas mais «seguras» de contacto sexual o que os desagrada sobremaneira. Procura um médico fora da cidade que, ao saber para que fim se destinava a consulta tenta abusá-la não o conseguindo, mas, ainda assim, recomenda-lhe o método falível da temperatura.A França em pequenino.  O envolvimento com Patrick degrada-se cada vez mais. Patrick adere a um grupo misto de jazz com a sua bateria dada por um sargento americano, Wadd, através de um mercado negro florescente da base para as vilas e cidades próximas. Wadd inicia uma relação com Marie-José que pensa, assim, fugir aos estereótipos franceses, enquanto adere lentamente ao estereótipo americano. Ambos, Patrick e Marie-José, faltam às aulas e confrontam a vida dos pais que não querem ver repetidas nas suas. Patrick envolve-se com Trudy, filha de um tenente da base americana. Os jovens amigos franceses deixaram de se falar ou sequer olhar-se entre os dezasseis e o princípio dos seus dezoito anos. Ignoram-se, dentro da sua fé americana.

Começam a iniciar-se no haxixe, na música e no mercado da base através de um amigo, François-Marie Ridelsky, que muda o seu nome para Rydell. Creio que é uma personagem importante na história de Quignard: frequentemente bêbado, meio louco, hiperativo, empenhado em experimentar a cultura americana até ao limite é, contudo, ele que a desmonta quando começa a perceber o vazio daquelas personagens que povoam as várias (não foram tão poucas assim) cidades francesas sob a administração militar americana. O PCF, forte, na ocasião, segrega igualmente estes jovens, enquanto faz uma campanha cerrada de US Go Home, lida por todo o lado.

Diz Rydell, a uma certa altura, tal como um xamã: «Tudo está perdido! Tudo desapareceu como uma gota de água na imensidão do mar. Entre a alucinação e o caos, o real ergue-se e respira como uma vaga de nascimento e morte. Mostra-se tão caprichoso, nas suas consequências, que se torna imaginária, na sua perceção. A trama e a cadeia de gerações e de metamorfoses prosseguirão no mesmo desenho impaciente, mortífero e inexplicável. Os sexos ardem. Tudo é fogo, tudo é desejo de satisfação. Tudo é vontade de encontrar o prazer. Tudo é desejo de morte. Os nossos olhos nos sonhos, como os nossos olhos na vida de todos os dias, têm sede. Sede de imagens de sereias que são regadas com a morte que subjugam. Tudo é ódio na vida, servilismo, pesadelo.»

De novo Rydell, que se afasta cada vez mais da cultura americana, sem todavia, deixar o mercado negro da base militar, uma verdadeira caverna de Ali-Baba, para Patrick: «Eles (os americanos) são desprezíveis. São racistas. São a desonra do planeta. Olha para eles. Eles não compreendem, nem mesmo a música que permitem difundir num continente inteiro. Como sonhar sequer com uma arte numa sociedade assim tão podre? São fantasmas que nós servimos. Ectoplasmas de páginas publicitárias, jornalísticas, com ordens de compra. Não compreendo que estejas apaixonado por Wilbur, de True, dessa banda de miseráveis. Todos esses brancos que nos roubam e que nos enchem de vergonha. Os verdadeiros são os negros. Eles, os brancos, são falsos. Olha! São fantasmas rosados. Deixa-me. Vai à procura de Brenda Lee!»

Rydell clama e todos deixam de o ouvir. Pensam-no louco. Mas, em breve, os factos extraordinários que vamos ler em «A Ocupação Americana» dar-lhe-ão razão. Em 1949, tudo caminha para um abismo sem sentido. Na despedida dos americanos quando a base é levantada, o sargento Wadd, despede-se, ironizando: «Vamos go home! Agora, aguentem com os Russos.» Ainda se pensava que Estaline avançaria para oeste, mas como diria o padre de Meung: «Alemães, Americanos e agora Russos? Não há cidade que aguente.» 

Um livro essencial em todos os aspetos, porque pode ser lido de vários ângulos. Mas o abismo e a solidão de uma juventude dividida nos anos pós-45 pressentem-se em cada página da obra.

António Luís Catarino
Coimbra, 26 de janeiro de 2020