domingo, dezembro 29, 2019

O Labirinto espanhol de Javier Cercas

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Javier Cercas é um «escritor de sucesso», seja lá o que for que isso signifique. Para esse epíteto é necessário que o autor seja reconhecido com mais de 30 prémios nacionais e internacionais (lá se encontram os jogos florais de escritores que dão pelo nome de Correntes d’Escrita), seja traduzido pelo menos por cinco línguas estrangeiras e seja considerado como possível Nobel. Ele tem tudo isso e até mais. A capa do livro que eu li «El Monarca de las Sombras» tem «Best Seller!» lá inscrito. Ainda tentei com a unha do polegar direito descolá-lo, mas não, era mesmo uma inscrição na capa. Certezas de editor, digo eu!




O autor escreveu antes, em 2001, «Os Soldados de Salamina» que descrevia o combate de um republicano que, com a sua coluna, combatia os fascistas, falangistas e destacamentos «mouros», sendo que o herói era aquele. Estava escrito, escrito estava. Nada a fazer perante uma sociedade ainda hoje dividida em dois e cujos direitistas o recriminaram por passar uma esponja sobre os crimes levados a cabo pelos voluntários da II República, destacando os massacres perpetrados pelos franquistas, exagerando-os. Javier Cercas prometeu a si próprio nunca escrever um livro que «anulasse», pela ambiguidade ou suposta imparcialidade, que aliás ele sempre recusou para com Franco, a mensagem de que a razão estava do lado da República, fossem eles socialistas, comunistas, republicanos radicais, anarquistas e os brigadistas internacionais abandonados mais tarde pelas democracias ocidentais e pela URSS.

Seja. Mas esta posição louvável do autor aconteceu em 2001 e num par de anos depois... estamos agora em 2017 (data da saída de «El Monarca de las Sombras») e muita água passou debaixo das pontes. Assim, ele que nunca escreveria nada que propusesse alguma condescendência para com o franquismo, viu-se no meio de uma enorme hesitação em escrever, afinal, o que nunca disse que escreveria. Tratava-se da sua família fascista e particularmente de um tio, Manuel Mena, cuja história era contada pela mãe dele, entre sombras e dúvidas, entre silêncios e contradições. Manuel Mena era falangista, um camisa azul (também por lá os havia), seguidor fanático de Primo de Rivera e que tinha as suas contas a tratar com Franco de quem não gostava. Morreu com 19 anos e quando, aos 17. se inscreveu no 3º Batalhão dos Tiradores de Ifni, ainda brincava com a sobrinha mais velha, mãe de Javier Cercas. Eu compreendo a sua necessidade em escrever esta história e lê-la com a atenção devida não indo atrás da porcaria do Best-seller com que os editores afastaram alguns leitores. O homem é mesmo bom escritor, e a história arrebatadora, mas adiante.

Manuel Mena morreu aos 19 anos na Batalha do Ebro que foi o corredor para a tomada final de Barcelona, sendo que Madrid resistia ainda. Essa outra grande batalha pela posse da capital aconteceu após a Batalha de Teruel, onde esteve Manuel Mena na linha da frente, tio-avô, portanto, de Javier Cercas. Foi ferido cinco vezes, três das quais foi hospitalizado por declaração do médico de campanha. As outras duas não se sabe como aguentou. Veio a casa aquando dos ferimentos graves por uma semana. Na última antes do funeral, mostrava-se já farto da guerra e custava-lhe ir outra vez para a frente de combate, sendo ele aos 19 anos um veteraníssimo da guerra e um jovem cansado. Não era por motivos ideológicos, mas familiares como se poderá antever pela leitura do romance.


O labirinto que travava Javier Cercas em busca de uma saída deu-se quando a bisavó de Manuel Mena entendeu queimar todo o espólio dele. Nada restava a não ser um velho retrato com farda de gala de alferes e medalhado com a mais alta condecoração do exército rebelde. É nesse labirinto que nos entranhamos nas sombras que ainda hoje existem em Espanha. Nos inquéritos a várias personagens o silêncio imperava até que na estrada sinuosa dos vários arquivos Javier Cercas foi deslindando, sem que, mesmo nesses documentos os erros de registos de acumulassem. Manuel Mena, falangista, não morreu na Batalha do Ebro como se pensava. Aliás, militares contemporâneos e generais de Franco não entendiam a sua estratégia. As duas Batalhas mais sangrentas de Espanha (Teruel e Ebro) podiam ter sido evitadas poupando a vida a 200 mil homens de ambos os lados, sendo que em Teruel perante um ataque republicano que dividiria o sul franquista em dois, preferiu-se o combate quase corpo a corpo, evitando-se uma retirada e posterior cerco pelo Norte. O mesmo em Ebro: as forças republicanas acantonadas nas margens do Ebro, não barravam o caminho para Barcelona. Bastava rondá-las e entrar por Aragão. Mas não, não era incompetência de Franco, era, antes, a sua política de extermínio total dos inimigos que durou até 1975.  

Javier Cercas quis saber da sua família. Ela aí está neste livro, na aldeia de Iberhando no Distrito de Badajoz, perto de Cáceres e com raízes conservadoras e direitistas profundas. Mas para um leitor comum não deixa de ser literariamente muito forçado para o tentar equiparar a Ulisses ou Aquiles ou mesmo Quixote, buscando citações aqui e ali que demonstram o que «é o Homem». Manuel Mena escolheu o seu lado numa extensa luta de classes, onde os menos pobres dos camponeses se aliaram aos grandes e os mais pobres do pobres viram na República (mesmo com as suas contradições e traições intestinas) uma porta aberta para a dignidade que os operários exigiam há muito. Sim, o Homem é capaz do melhor e do pior, é tão violento como promotor de solidariedades, a guerra é mesmo assim, a banalidade da morte faz-nos anestesiar perante o mal (Javier Cercas chega a nomear Harendt, Ortega y Gasset e Unamuno), mas tanto Humanismo chega! Até porque sabemos que os dois últimos têm telhados de vidro... Mesmo na emoção sentida da mãe de Manuel Mena que no seu funeral sem lágrimas, e com a saudação romana, brada «Arriba España! Querido Manolo. Arriba España!» Um dos amigos de Manuel Mena, que pertencia ao mesmo 3º Batalhão de Tiradores de Ifni desabafou com Javier Cercas: «Una mierda la guerra!». «Como morreu Manuel Mena? Com um tiro de espingarda que lhe entrou pelas costas e alojou-se no peito, num morro que nada tinha de estratégico. Morreu com dores terríveis e a gritar! Quando o levaram ao hospital de Bot, já na Catalunha, não foi logo atendido porque não havia lugar para ele. Os quartos do 1º andar estavam ocupados por majores, tenentes e coronéis, mais altos em graduação mas com ferimentos de menor gravidade do que ele! Manuel Mena não pertencia aos ricos! Esteve duas semanas abandonado, a agonizar, no rés-do-chão.»


Assim morreu Manuel Mena de Iberhando, aos dezanove anos, cinco ferimentos em numerosas batalhas levando possivelmente o fanatismo de Primo de Rivera com ele. Heróis? Há heróis nas guerras?

António Luís Catarino
Delémont, Suíça, 29 de dezembro de 2019

Nota: a edição portuguesa é da Assírio e Alvim.