sábado, julho 31, 2010

Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes, por José Mário Silva, no Expresso

**** Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes

Jurista ele formação, José Ricardo Nunes publicou cinco livros de poesia e dois de ensaio antes de se estrear na narrativa curta com "Alfabeto Adiado": 23 textos em que a linguagem está no centro de tudo, substituindo-se por vezes a própria realidade.   
Nestas histórias fugidias, contadas sempre na primeira pessoa do singular (um "eu" difuso e problemático), os narradores assumem "uma existência exclusivamente literária" que não apenas os afasta do "curso de uma vida normal" como os precipita em abismos de perdição e estranheza. Uns descarrilam, outros apagam-se sem se perceber porquê, ou desligam-se gradualmente do que os rodeia (a família, o emprego, as rotinas quotidianas). Ficam suspensos, presos no lodo com água pela cintura, escondidos em buracos para sobreviver à desolação do mundo, encostados as cordas a "esmurrar o vazio". Há neles um impulso itinerante, um talento para a deriva que os empurra através da Europa, uma fome de redenção impossível de satisfazer. De uma forma ou de outra. 
Sentem-se deslocados, desfasados, em "dissonância" com o "fluir do tempo". Depois, nos seus casulos de solidão, escrevem sobre o que lhes acontece: os tormentos obsessivos, o brusco resvalar para a loucura, É uma escrita em "selvagem propagação" que tanto se aproxima do rigor cortante de Robert Walser como do engenho barroco de Borges (por exemplo, no exercício metafísico de  'Repetição da Minha Vida ou, mais explicitamente, em “O Livro”, que inverte os pressupostos da célebre história de Pierre Menard). Incómodo, imperfeito, cheio de arestas, literatura pela literatura.  "Alfabeto Adiado" surge a contracorrente na ficção portuguesa actual. E esse é o maior elogio que se pode fazer. 
                  José Mário Silva, Rev. Actual, Expresso, 31 de Julho de 2010