sábado, abril 29, 2006

Enquanto não vejo Müller no Hotel Hessischer Hot, reencontro-me com Nus, dos Mão Morta.

Enquanto não vejo o último trabalho em DVD dos Mão Morta, Müller no Hotel Hessischer Hot (já mandei vir pela Cobra Discos), lembro o Nus e um texto de Adolfo Luxúria Canibal que tomo a liberdade de o editar aqui. Para ler e ouvir.

«Convém, talvez, começar por referir o que está por trás da génese de "Nus" e que ajuda a compreender a sua estrutura: o ponto de partida, quer para a composição quer para as letras, foi o poema "Uivo" ("Howl") de Allen Ginsberg. É um longo poema, de um só fôlego, em escrita automática, que opera por sobreposições, com um ritmo ancrado no 'who' que inicía cada novo quadro, um 'who' surdo, repetitivo, como a pontuação de um contrabaixo, onde Ginsberg faz uma espécie de retrato à base de flashes da sua 'Beat Generation'. No disco, a geração em causa é a nossa, a geração 'lisérgica' bracarense; "Gumes", a faixa longa que abre o disco, é um encadeado de 9 momentos, uma sobreposição de 9 quadros, tanto musical como tematicamente, que tem uma função, digamos, de espinha central, a que os seis temas mais curtos se vêm ligar como desenvolvimento ou sublinhar de ambiências aí contidas. Ou seja, do "Uivo" pegamos nas ideias de retrato geracional e de construção por sobreposição e trabalhamo-las à nossa maneira, com a finalidade não de um poema literário mas de um poema musical.
Porquê o "Uivo"? Num momento em que muitos - demasiados - daqueles com quem crescemos e descobrimos o mundo e o afrontamos, com quem tecemos cumplicidades indestrutíveis e nos habituamos a ver a nosso lado, nas suas pequenas fraquezas e nas suas glórias, quase como parte de nós, no momento, dizia, em que, quase por contágio, abruptamente, sem avisarem, aqueles em quem nos revíamos são ceifados das nossas vidas e definitivamente apartados do nosso contacto, deixando um deserto a progredir à nossa volta, há um incomensurável vazio que nos invade e nos reenvia para a nossa própria fragilidade. Na estranheza em que se transforma então o quotidiano, a memória tende a negar a ausência como uma alucinação redentora, soçobrando o presente, paralisando o respirar. Mas foi também do fundo da memória, primeiro como um ruído imperceptível, depois como uma obsessão implacável, que ressoaram as palavras de Ginsberg - "Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela loucura, esfomeados histéricos nus..." - trazendo um conforto, um bâlsamo que não julgávamos já possível. E também uma vontade de o cantar, esse passado que não volta mais, esses amigos que não mais cruzaremos, como quem diz adeus, como quem faz uma última despedida. Aquela que não foi feita. À memória... »

Adolfo Luxúria Canibal

GUMES - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

1.Na noite que se avizinha, um mar de gatos com cio invade os sotãos, ensanguentando as memórias com a dor pungente dos dias em que o gume, o terrível gume das horas afiadas, rasgava os espíritos. Já o clarão das ruas toldava os cérebros com angústias venenosas e vertigens de suicídios sonhadores, na vontade de fugir ao inóspito vazio do tempo da ausência...

2.Acção!Isto é um assalto!...Todos de mãos no ar!Não quero nem um gesto...Passa p’ra cá esse vil carcanholPara irmos daqui sem funerais!...Anda homem ou és um caracol?!Não quero ficar aqui à espera dos maiorais...(Vai junto à porta ver se o caminho está livre para a nossa saída...)No chão! Quero toda a gente no chão...Assim!... Vamo-nos pirar!...Já!

3.Eu sou estas mãos que se fendem na areia como um velho pau
A serpente que se arrasta o corpo em assaltos ao olho do cosmos
Tudo vem a mim a escura escama dura dos monstros do fogo
Um ventre de rei em corcel alado de freio nos dentes
Flash
Aí está Stanislau
Belo como estrela do mar gigante em asilo de lepra
A tirar a espinha às horas
VemVemVem
Flash
Flores carnívoras passam sua língua no ventre do lacrau
Os seus lábios grossos deixam escorrer o esperma quente
Prova a minha orelha
Prova o meu caixão
A morte ronda
A vida cresce
Floresce
Flash
Amanhece
(...)

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