Parsifal, 2025
Não se trata de uma simples comparação entre quatro revoluções, até porque não estamos perante um modelo de análise simplista da História. Antes pelo contrário: há complexidades várias no decorrer do tempo político e social nessas mesmas revoluções. As particularidades revolucionárias da Comuna de Paris de 1871, não são as mesmas da Revolução russa de 17, dos Conselhos alemães de 18/19 ou da Revolução portuguesa de 74/75. Mas há, como não poderia deixar de ser, pontos comuns que António Louçã e Aldo Casas põem em relevo neste livro.
Desses pontos comuns realça-se sobretudo a apropriação dos meios de produção pelas massas populares, pelos pobres, que tentavam auto-organizar-se em conselhos autónomos livres. Muitas vezes de forma ingénua, hesitante, outras enraivecidos pela fome, pelo cerco ou pela miséria souberam usar a força para se apropriarem não só de fábricas, das instituições públicas, de casas devolutas, dos campos terratenentes, mas também expulsarem os possidentes das suas próprias vidas comuns criando a possibilidade de uma outra realidade que há muito desejavam para si baseada na liberdade e na autonomia.
Paradoxalmente pormenorizada e sintética, os autores apresentam a História dessas revoluções de um modo crítico e visivelmente parcial, estando ao lado dos mais fracos na «conquista dos céus», mas que em nada prejudica a visão geral dos acontecimentos descritos. E assim deve ser a História. Desconfie-se de todos aqueles que chamam a neutralidade para «analisar» factos históricos: ao fazerem-no listam a história anedótica ou falseiam-na propositadamente. Não é o caso deste «O PREC e o Relógio das Revoluções».
Sobre o PREC português, acrónimo pejorativo tardio, que serviu durante décadas para o menorizar ou ridicularizar os dois anos do processo revolucionário, logo após o 25 de Abril e a queda do fascismo e o final da guerra colonial, os factos descritos não constituem novidade, mas as suas consequências são fruto de observações claras, honestas, para além de uma visão crítica já referida. Analisam-se a formação de Comissões de Moradores, por acaso ou talvez não, as primeiras movimentações populares de ocupação de casas devolutas logo três dias após o 25 de Abril, a reconstrução e legalização de infraestruturas dos bairros de lata através de arquitectos ligados ao SAAL, a ocupação de terras a sul (perto de 1,5 milhão de hectares em UCP ou cooperativas agrícolas), a democratização e/ou desmantelamento das estruturas militares repressivas, a ocupação de fábricas cujos donos eram agentes activos na sabotagem económica ou que não atendiam às reivindicações básicas dos trabalhadores, a formação de imensas Comissões de Trabalhadores em todo o país e nas empresas, a movimentação de estudantes liceais e universitários na gestão democrática e pedagógica das escolas, enfim, um turbilhão de desejos e de vontades expressas por uma democracia directa, pelo poder popular.
Se este poder popular no PREC não foi transformado em conselhos revolucionários efectivos como o tentaram em Paris, Petrogrado ou Munique foi pela mesma razão: a sabotagem política de quem se dizia com a revolução, mas que tão rápida quanto eficazmente lutou contra ela, e caso destas últimas revoluções referidas, não hesitando em derramar sangue, prisões ou torturas. Histórias que contam com centenas de milhares de mortos, massacres autênticos que não impedia que se utilizassem até, exércitos estrangeiros para sufocarem os levantamentos populares.
E se não houve derramamento de sangue em Portugal que possa ser comparável às outras três experiências revolucionárias, não foi por causa dos chamados «brandos costumes» portugueses, como lembram os autores. Os brandos costumes não existiram nos 500 anos de colonialismo selvagem, na brutalidade da Inquisição, nos castigos bárbaros que o «povo» exercia sobre soldados franceses nas invasões, na Guerra Civil de 1832-34, nos mortos do Tarrafal e da PIDE, ou no terror de direita e da igreja no «verão quente» de 75. O que impediu a Guerra Civil em 1974 foi Novembro e a negociação que se lhe seguiu ou que lhe esteve na base. O papel dos «moderados» e dos militares ditos moderados é disso exemplo: não necessitavam de um massacre à «comuna de Lisboa» como lhe chamava a direita e a sua extrema, porque a esquerda perdeu o rumo, tendo força e armas, não saberia para que fim usá-las. Os que fizeram Novembro só eram moderados até perderem essa moderação se necessário fosse. Utilizariam as armas sem qualquer problema de consciência. O regime que hoje temos é de uma Constituição que já nada diz e que a esquerda teimosamente afirma conter «conquistas irreversíveis» que mais não é do que sobras de um Estado Providência depauperado e um item indispensável para a social-democracia. No entanto, após 50 anos, as classes possidentes em Portugal já não necessitam da democracia. Querem uma outra coisa que não tardará a conhecermos. Contudo, o que fica daqueles anos inesquecíveis de 74/75 foi a enorme energia de quem nada tinha a perder e tudo a ganhar. As coisas eram diferentes, tornaram-se outras, o entusiasmo e alegria invadiram as ruas, as assembleias, os cafés, os clubes, as empresas, os campos e as casas. A raiva que eles ainda demonstram possuir é directamente proporcional a esta alegria inscrita na genética revolucionária que ainda existe em nós e muito bem expressa neste livro.
alc
