quinta-feira, maio 22, 2025

«Enclave», Maria Lis

 

Língua Morta. Outubro de 2024. Fotografias de Ana Filipa Correia
Sendo o prometido devido, eis a ficha de «Enclave» de Maria Lis, poesia inquieta, não classificável (e por que o haveria de ser?), incomodada, mas paradoxalmente suave.

As crianças não são brandas, nem doces. Por vezes, são cruéis tal como nos diz o lugar-comum e o pobre do Golding. Maria Lis parece querer protegê-las dos seus diversos «encarregados» porque há sempre um encarregado, um prefeito que vela por nós, que nos limita os desejos, que nos ordena as regras, um director que domina o sonho infantil: «As palavras difíceis precisam de um encarregado» (pág.9). 

A proposta poética é, também ela, a da invisibilidade, uma constante em «Enclave»: «A invisibilidade começa por ser um poder precioso» (pág.17). Mesmo que algumas crianças tapem os seus olhos quando de lhes pede para se esconder. O não ver, o não querer ver, o não tolerar estar aqui. Ou fugir nos tejadilhos dos comboios em linha recta, sem destino, ou numa eterna planície desértica sem fim:

«A criança que não manda
gira o corpo ao redor de si mesmo
e vê os comboios cumprirem a rota
que o dono decidiu.»
(pág.36)

No tejadilho de um comboio em andamento «um tejadilho passa a ser um lugar / onde a lei não vinga» sentimos o vento na cara e nos cabelos, no corpo aberto em equilíbrio, com os Apaches e Geronimo acompanhando-nos em ritos estranhos e em cavalos alados. Seja o que for este sonho constante de fugir até ao momento do embate, um dos momentos mais empolgantes dos versos de Maria Lis neste «Enclave»: «(...) estamos sempre desprevenidos / no momento do embate.» (pág.42) Perceberemos melhor se tivermos o livro à mão e o entendermos como um todo, juntando, inclusive poemas soltos. Arrisco:

«Não nos queremos ter de pé
porque o corpo cede
e todos os planos para a revolução
foram ficando para trás
    mesmo aqueles que eram ponto a ponto
    escandidos em etapas claras
    sustentados pela evidência
    de ser para todos»
(pág.41)

«Da ideia de um todos
tantos foram sendo deixados

que risco da agenda
as alíneas do pacto de deus de Abraão
e do dicionário
a entrada que descreve os eleitos
e de todos os tomos d'O Capital
risco a palavra proletariado.

Não existe fatalidade para as leis económicas
nem um devir
nem quem se encarregue
nem advento
nem dialéctica interna do capitalismo
nem proporcionalidade
nem maturação da classe explorada
estaremos sempre desprevenidos
no memento do embate.»
(pág.42)

«Estaremos sempre desprevenidos no momento do embate», mesmo quando estivemos prestes a conseguir sair do onírico das utopias e continuar a deslocar-nos para o abafado e sufocante concreto.

E este devir selvagem das crianças e dos revolucionários apodera-se, numa metáfora extraordinária, de Geronimo numa fotografia de 1886, cansados de uma fuga constante, encostados aos carris da Southern Pacific, no Texas:

«(...) A última rendição de Geronimo
dá-se no mesmo ano, não sem que o governador de Sonora
se tenha antes espantado pelos 500 ou 600 civis mortos
                                                                    ou pilhados
por 16 dos seus guerrilheiros, em dois ou três meses.»
(pág.49)

Todas as possibilidades se abrem, portanto, mesmo contando com a exaustão mortal de Geronimo e o abandono dos seus. Ou, então, a possibilidade, a dúvida, de 

«(...) como durante a construção da muralha da China: 
sem dúvida devem existir brechas
que não foram absolutamente cobertas.»
(pág.89)

Torna-se logo evidente que nos poemas seguintes a solução preconizada face à muralha assente na reinvenção moderna do trabalho escravo é «... fazê-la cair de vez.» Tal como os muros do México que os sucessivos presidentes americanos ergueram em milhares de quilómetros, tal como as crianças indostânicas que entrelaçam os fios das nossas camisolas. De qualquer modo, este «Enclave» tenta sair da redoma imposta das nações, das fronteiras, dos papéis, como escreve Maria Lis. É um enclave em expansão, movimento do universo que tem um «destino» para amanhã se, entretanto, os adultos não perderem «a sua incapacidade de magia» de que as crianças são portadoras.

Cita Benjamin, certeira. Do seu suicídio, nos Pirenéus, com uma overdose de morfina, enquanto aguardava a deportação com outros judeus junta os seus poemas a uma frase póstuma:

«Num dos seus escritos
publicados postumamente
define o capitalismo
enquanto um culto 'sem sonho nem piedade'
religião 'da ostentação de toda a pompa sacral
e do empenho extremo do adorador'
onde os 'dias de trabalho e de culto'
indistintos
partilham nave e altar.

Então um mundo onde a culpa
se sobrepõe à esperança, à redenção
e o Éden se apresenta como uma grande loja
onde a brisa de um ar condicionado
de tão previsível
não causa arrepio à pele
(...)»
(pág.131)

Depois de lembrar Fra Angelico, é impossível não pensarmos no anjo do desespero de Heiner Müller e do anjo amedrontado de Klee ao ver o mundo destruído: 

«Sabem que não há anjos a evocar / ninguém, nem homens, nem animais / que desçam àquela terra / para algum alívio / e que o corpo iluminado / tem necessariamente / sombras do lado oposto a esse / onde a luz cai.» 

Já não há anjos, nem no desespero do mundo. É possível que já tenham abandonado o tal Éden e sejam tão mortais como nós; mas descer em qual terra? Em que fronteira pedir-lhe-ão a identificação? Só explodindo o enclave. Seja.

alc