domingo, janeiro 19, 2025

«O Fim do Império», Ribeiro Cardoso

 

Por vezes, estas leituras deviam ser-nos apresentadas como obrigatórias para necessária catarse individual, já que a colectiva tarda e cá para mim nunca será feita convenientemente por um povo (essa entidade de conceito trôpego) que acredita piamente numa coisa chamada luso-tropicalismo. Não se espere uma narrativa literária, mas antes uma peça jornalística bem fundamentada por um então alferes, Ribeiro Cardoso, que na ocasião estava em comissão em Moçambique. O autor era igualmente jornalista do malogrado Diário de Lisboa que eu comprava diariamente à tarde. Os factos são descritos, em depoimentos, pelos protagonistas do 7 de Setembro de 1974 na então Lourenço Marques, em que a extrema-direita tenta evitar os Acordos de Lusaka que deram à Frelimo o poder em Junho de 1975. O jornalista sabe distanciar-se convenientemente de algumas posições políticas tão alucinadas, quanto perigosas. E que o foram verdadeiramente, contando-se aos milhares as vítimas desse fim anunciado do Império que ainda incha o peito de tanta gente.

O desespero é tramado, mas antes de descrevermos muito brevemente o que aconteceu e se seguiu à data de 7 de Setembro de 74, vale a pena dizer que a curiosidade histórica me levou a ler um diário de um soldado que esteve em Mueda, no norte de Moçambique, nos anos de 1966 e 67, sob fogo cerrado dos independentistas moçambicanos da Frelimo. Publicado, em 2024, por uma Biblioteca Municipal, alguns episódios descritos são terríveis e perante a morte de camaradas seus, em que se incluía igualmente o seu alferes da Companhia de que fazia parte, ele chega a suspender a sua escrita diarístíca. Parecia que este soldado não queria viver mais uma realidade que o transcendia, que lhe levava os amigos, os camaradas, que o impedia de estar com a família, a namorada da terra lá longe, num país que o obrigou a matar a troco de um pré miserável e de uma eventual medalha por serviços prestados à Pátria. Pagaria também um caixão que o trouxesse para o país, dito metrópole. Provavelmente, ao suspender a escrita do seu diário seria uma forma de tentar salvar-se. O que conseguiu. Já na idade dos setentas e muitos lá acabou as páginas finais do tal diário que li e que contrasta visivelmente com a narrativa oficial das instituições militares. Daí ser importante ler estes testemunhos para se perceber a chamada «moral» das tropas e o que os soldados sentiam antes das chamadas «missões» no interior em que eram mortos inocentes, queimadas aldeias, feitos prisioneiros sujeitos à tortura e a «interrogatórios». Para ver a dimensão da violência que grassava, entre 1966 e 1974, morreram, na prisão de Machava, 857 prisioneiros independentistas, como nos conta Ribeiro Cardoso em «O Fim do Império». Não estão nestes números, as dezenas de milhares que morreram em combate de um lado e de outro.

Quando se culpa a descolonização de crimes «atrozes» para a população branca de Lourenço Marques, era bom que lêssemos esta peça jornalística de Ribeiro Cardoso que foi testemunha presente nos acontecimentos que levaram ao 7 de Setembro de 1974 com a ocupação do Rádio Clube de Moçambique, do aeroporto e de outros locais públicos que são essenciais na lógica de um golpe de estado civil e militar. Os brancos de Lourenço Marques não aceitavam os Acordos que davam à Frelimo a possibilidade de independência efectiva da ex-colónia. O tão propalado e propagandeado luso-tropicalismo «suave» de miscigenação feito, deu lugar, demasiado depressa, ao violento ódio racista que levou ao massacre de milhares de negros nos bairros do caniço que delimitavam a cidade de cimento onde a população branca estava habituada a viver com os seus privilégios intactos. A tal «suave miscigenação» deu lugar, dizia, ao apelo branco à Rodésia e à África do Sul, países do apartheid, que lhes virou as costas, abandonando pides (200 foram libertados da Machava nesses dias), gente ex-ANP do antigo regime, mercenários, organizações fascistas paramilitares de «defesa civil» que ainda operavam livremente, os comandos estacionados em Montepuez, a PSP, os «Dragões da Morte» e por aí fora. É evidente que a resposta africana não se fez esperar e agora os massacres foram de cariz contrário. Até dia 12 de Setembro, e por interferência de Machel, de Chissano e dos guerrilheiros da Frelimo, foi posto fim à retaliação massiva. A fuga da extrema-direita branca e negra para a Rodésia e África do Sul seguiu-se em revoadas. Foi esta gente que, vinda mais tarde para Portugal, anunciava os «crimes da descolonização» e do «comunismo» e que foi fértil em estar ao lado dos spinolistas do ELP e MDLP. Spínola, aliás, cuja posição política contra o programa do MFA e hesitação criminosa perante a independência total das colónias, preferindo uma solução governativa «branca» e federalista, foi um dos factores determinantes no eclodir da violência que se instalou na descolonização e posteriores guerras civis. O 28 de Setembro de 1974 em Portugal está profundamente ligado a estes factos. Mas isso é outra história. O que é contado neste livro é essencial para perceber a irrealidade de um Império com pés de barro, que provavelmente nunca o foi verdadeiramente, mas sim um arremedo de experiências baseadas em conceitos vazios. Infelizmente, as inúmeras vítimas que o Império provocou não se encontram entre nós. Salve-se a memória que este trabalho nos apresenta.