quarta-feira, junho 09, 2021

Kapuscinski de arma ao ombro

 

Sinceramente, embora Kapuscinski explique o título do livro ligando-o a uma pintura do pintor argentino Carlos Alonso, custa-me a compreendê-lo porque as personagens que compõem as reportagens do autor polaco nada têm a ver com Cristo, mesmo o «primitivo». Pelo menos, não conheço, de todos os que cita e entrevista, qualquer referência ao cristianismo. Ou pior um pouco, que a figura de Cristo dá para todos - até para os torturadores da América Latina e da CIA. Do imperialismo americano e dos seus homens de mão. Imaginemos um esquadrão da morte guatemalteco, num jeep, à caça de comunistas. Estão todos de camisa verde, óculos escuros, botas cardadas e calças pretas. Arma no coldre e metralhadora na mão. Facas para as torturas antes dos fuzilamentos. Quantos não teriam, por mais paradoxal que nos pareça, um crucifixo ao pescoço para espiar as suas acções?

O livro foi finalizado em 1975, em plena Guerra Fria, mais concretamente na época da «détente», o que explica muita coisa que vamos lendo. Em 2007, Kapuscinski atualiza as reportagens e é esta versão que a Livros do Brasil agora repõe de novo. O autor morre 7 anos depois.

A obra é composta por três capítulos, sendo o primeiro dedicado à Palestina e aos laicos feddayin que hoje já estão incorporados no Hamas quer gostemos, ou não, da vertente religiosa da organização apoiada pelo Irão. Mas luta-se na Palestina ainda hoje e lutar-se-á sempre enquanto houver Israel e a sua política escandalosa de apartheid para com os árabes. A violência explica-se pela violência; esta, exercida há décadas contra uma das regiões que, no passado, eram das mais prósperas do Médio Oriente e onde reinava a paz entre os judeus e os árabes que lá viviam há séculos. Foi necessário a Inglaterra colocar lá os sionistas para que árabes e judeus autóctones começassem a sentir a mão pesada dos grupos terroristas da extrema-direita. Desde Urion, Dayan, Golda Meir, Sharon ou Nethanyau. O projecto de Israel acabou em 1948, portanto logo que se iniciou. O que lá está é um estado pária, vingativo, racista e genocida. Em 1975 já era assim e o autor escolheu o lado certo da História. Os palestinianos.

O segundo capítulo é dedicado à América Latina e à luta dos seus povos à liberdade e à dignidade seja contra a United Fruit e a CIA, seja contra os seus esbirros domésticos, numa teia de enorme complexidade política onde se cruzam guerrilheiros maoístas, nacionalistas, trotskistas, comunistas e anarquistas com a luta mais «legal» (se assim se pode considerar uma luta dentro de uma ditadura sanguinária) de dirigentes sindicais, ligas de camponeses espoliados das terras, estudantes, operários e mineiros. E nem tudo o que parece é, chegando o autor a dizer que um nome de um partido que para um ocidental parece ser revolucionário, é tão mais reaccionário quanto o último do mesmo nome, como é o caso do PRI mexicano. Kapuscinski leva-nos à Guatemala, Bolívia, República Dominicana, Haiti ou Chile. Ele esteve lá, conheceu dirigentes e guerrilheiros, sindicalistas, advogados pelos direitos humanos e «saiu» de lá desassombrado, algo deprimido pela extrema violência do continente onde os esquadrões da morte são uma regra. Chega a questionar a bondade e ingenuidade dos guerrilheiros que não fuzilavam ou assassinavam muitos do outro campo, apanhados nas malhas da guerra. Simples soldados a quem era dada liberdade, mesmo com o risco de imediatamente dizerem as posições das unidades revolucionárias. Assim, compara a estranha honra de Allende e de Che Guevara ao deixarem-se matar, anulando os compromissos ou negociações com os captores. Preferiram a morte. Talvez tivessem tido razão, cada um à sua maneira, afirma o autor no fim, como um corolário. Chega a defender que este tipo de «honra» é muito típica da esquerda americana. Para o mal e para o bem.

A terceira parte do livro tem a ver com Moçambique. Kapuscinski conheceu Mondlane e Chissano no primeiro congresso da FRELIMO, em 1962. Estava-se em Dar-es-Salam, na Tanzânia e era Mondlane que tratava de um minúsculo escritório de uma só sala por cima de uma bar do decrépito Hotel Arusha. Nesse hotel estavam vários dirigentes guerrilheiros do leste e sul do continente africano dos anos 60 e foi ai que se começou a organização armada contra o regime colonial português que explodiu em 1964. O que nos conta desse congresso e da ínfima quantidade de armas velhas com que se iniciou a libertação colonial é comovente. Tanto assim, que Mondlane, em 1964, afirmava ao autor/jornalista/repórter polaco que daí a 20 ou 30 anos Moçambique iria ser independente. Kapuscinski concordou com ele devido às frágeis condições de luta da guerrilha moçambicana contra a repressão colonial portuguesa, ajudada por as todas poderosas África do Sul, Rodésia e mais a CIA (novamente a CIA!). Mondlane, como sabemos, veio a ser assassinado pela PIDE em Dar-es-Salam, com a ajuda dos serviços secretos do poder branco africano.

Para nossa admiração levaram somente 10 anos para conquistar a independência! Quer Mondlane, quer Kapuscinski erraram, o que nos devia fazer pensar melhor sobre as múltiplas possibilidades abertas de vitórias «impossíveis».

António Luís Catarino