sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Um poema de 1981 de Luís Nogueira encontrado em alfarrabista


31 de janeiro deste ano. Pelas 11:00 entro na Sá da Costa, em Lisboa, transformada agora num enorme alfarrabista. Demorei-me bastante até encontrar uma pérola de Luís Nogueira de poema feito. Dirijo-me à menina da caixa com outros livros na mão e este que não era mais que um suplemento da Fenda Edições de Coimbra, talvez o seu número 4. Ainda hoje tenho a revista, mas não este suplemento de julho de 1981. O preço pedido era absolutamente incrível. Obsceno. Disse-lhe isso mesmo, mas que o levava porque o poeta foi meu amigo. Acrescentei que não poderia ser vendido sem a respetiva revista e que estavam a truncá-la. A menina vai lá dentro ao patrão e fez-me um desconto de...75%. O que tornou impossível a minha estadia mais que uns segundos para receber o troco.
Dedicado a Isabel Maria, fica aqui parte de «5 poemas & 1 envio (1975-1979)» em memória do Luís:

Devia trabalhar em silêncio, des-
palavrar máscara após máscara
até ao rosto febril
este remorso que se fez comigo
e povoa de espingardas voadoras
os degraus tépidos do sono;

chegar aos olhos
e vestido para tudo: dias tranquilos,
fúrias atlânticas, primaveras macias, indecisas.

Devia trabalhar o tempo todo
sentado à mesa da noite
e com a garantia das lágrimas;

deixar que os rios,
a premeditada inconstância das chuvas
e algum mar
alisassem por sua conta o trilho
por onde a memória trilha
tantos dias perdulários.

Ou então esquecer:
para as urnas douradas, o quinhão da insónia
como herança:
os limites prosperados da lembrança...

(...)

Luís Nogueira
julho de 1981