António Barros – O poema acompanha a deriva
«Se não morrermos aqui, seremos capazes de ir mais
longe?»
Internacional Letrista, nº23 de Potlatch
Quando, pelos anos 60, começa a despontar a poesia
experimental provocando a náusea aristocrática de muitos iluminados já então
escurecidos pela falência filosófica, na decadência da palavra escrita e sentida
como mercadoria, não se pensou que aquele tipo de expressão comum e vendável,
bem suportado pelo «romance/poesia/imagem», teria muito tempo de vida, tal a vitalidade
das novas formas poéticas. A poesia das «emoções», balofas, da virtualidade do
pastel de nata e do café pessoano, do enaltecimento do quotidiano como
possibilidade de uma falsa poesia da alegria alarve, mesmo que esse quotidiano
fosse o da miséria repetitiva no gesto, os poetas experimentais e António
Barros em particular, talvez dos poetas mais novos dessa onda purificadora,
denunciaram isso mesmo: o objeto como fétiche acumulativo de capital. Nasce
então o poema-objeto tão caro a Barros, ironizando toda uma sociedade de
produção nas suas peças, mostrando o inconcebível que os arautos da arte sofrível
nunca entenderam. O objeto contemporâneo, esse, é todo o fruto de um processo
de produção, cujo valor se divide na troca e no uso. Ora, a tese de Marx é
recuperada por Debord, chamando-lhe a esta diferença, o espetáculo. Barros e a
Po.Ex e provavelmente a Fluxus, perceberam o que outros, excecionalmente
dotados para o processo especulativo, nunca perceberam. A experiência, em
Barros, toma o objeto em forma de valor de uso, através da apresentação
metafórica deste e recusando o seu valor de troca. Essa produção poética
verdadeiramente provocante, que nos incomoda e que nos obriga à reflexão, não é
benquisto pelas hordas político-parlamentares que continuam a derramar aos
borbotões a sua ideia de vidinha. A deriva é exatamente o corolário artístico de
António Barros e explicado pelos situacionistas. É uma política notívaga que reage
em círculos concêntricos atravessando uma quadrícula urbana repressiva e que se
encontra no local onde nos sentimos identificados, livres, usando os objetos
certeiros que apontam aos estômagos. Portanto, objeto-poema e deriva contra o
quotidiano do tédio é o que se adquire observando e absorvendo cada
poema-objeto. Como afirma Asger Jorn «A arte compõe-se, toda ela, de signos
que, ao caracterizarem certas qualidades de um objeto, evocam a imagem deste».
Justamente. António Barros transforma o valor de uso de um objeto na poética
possível: retirando-o da cadeia de produção e propondo-lhe o signo.
António Luís Catarino
Coimbra 21 de abril de 2019
Texto que integra o livro de António Barros «Uma Luva na Língua»