domingo, janeiro 15, 2017

Hugo Pinto Santos escreve na última Colóquio Letras (194) sobre «Palimpsesto» de Ricardo Gil Soeiro


Sobre Palimpsesto (Porto: Deriva Editores, 2016)
Hugo Pinto Santos
A noção de palimpsesto pertenceu primeiro ao domínio histórico do registo e conservação de textos na superfície de um pergaminho ou papiro. Devido à onerosidade da matéria sobre a qual se inscreviam os textos, a superfície era rasurada para nela se registarem novos textos. Porém, mediante certas técnicas, como a transparência, era possível reconhecer o texto ou os textos prévios. Devemos a Gérard Genette, nomeadamente na sua obra Palimpsestes, a ampliação de sentido daquele termo, que passou a designar, metaforicamente, a “hipertextualidade”, ou seja, a permanência de traços e realizações textuais de uma realidade escrita prévia para outra subsequente. De tal forma que todo o texto passa a ser concebido como a retoma inevitável de realizações anteriores, que deixam os seus caracteres no futuro textual. O livro de Gil Soeiro apropria-se dessa concepção do facto literário. Fá-lo, desde logo, através do título, mas, sobretudo, por via da concretização de Palimpsesto. Trata-se, desde primeiros momentos, de preceituar e de praticar um princípio de escrita que se poderia designar como de pressuposição. Todo o texto, nesta concepção de escrita, pressupõe uma outra existência prévia. Um texto não propriamente arquetípico, mas lançador de veios recuperáveis na actualização em que a escrita consiste. Motivo pelo qual o autor pode socorrer-se de tropos indiciadores dessa teoria-prática – “retraçar do traço” (9), “A partir de outras mãos” (7), “o lume de outros passos” (16), “cauda de outros passos” (27). Esse ponto de partida condu-lo à tematização e ao equacionamento de séries significativas que, em vez de ultrapassarem o núcleo que está na génese desta escrita, o retomam e reiteram – “a voz que/pediste emprestada” (161). Muito como uma paralelização do princípio teórico que informa o livro e a poética que lhe subjaz. Assim como a noção de palimpsesto pressupõe uma pré-existência verbal que a nova escrita reinventa e transpõe, também o próprio poema como que encena essa matéria teórica e a reivindica nas suas “deixas”.
            Palimpsesto forma uma tetralogial distribuída pelos “volumes” “Da Vida das Marionetas”, “Bartlebys Reunidos” (correspondentes a livros anteriormente publicados pelo autor)[1], “Comércio com Fantasmas” e “Anjos Necessários” (estes constituindo núcleos inéditos). Qualquer um dos vectores deste políptico configura a elaboração de um conjunto de princípios operatórios disseminados ao longo de todo o livro. Desde logo, um princípio radicado por Genette em Jorge Luis Borges, que falava do “texto e seus textos preliminares”. Ou, como o exprime Soeiro, “uma arte polifónica de ecos que se movem, as línguas misturas, pele ardendo. Uma literatura de segundo grau” (8). De resto, a expressão “literatura de segundo grau” confina com Genette, cujo supracitado Palimpsestos tem como subtítulo, precisamente, “literatura de segundo grau”. Uma das imagens nucleares, nesta acção de pôr em prática aquela base teórica, é a marioneta. Esta é repescada e tematizada tendo em conta objectos fílmicos, pictóricos e literários. É o caso de poemas como “12. Da Vida das Marionetas, 1980: Ingmar Bergman” (27), ou “13. Teatro de Marionetas, 1923: Paul Klee” (28). Mas também “4. Lei da Gravidade”, cuja epígrafe é retirada de Sobre o Teatro de Marionetas, de Heinrich von Kleist. Uma repartição de forças criadoras por disciplinas artísticas que é uma constante em Palimpsesto – e que o é, na verdade, na produção de Ricardo Gil Soeiro de uma forma geral. A presença da pintura e da música em conjugação com o literário são dominantes destacáveis da escrita do autor.
            O “boneco articulado”, patente naquela citação kleistiana, é um agente fulcral de uma noção de inexactidão, inacabamento, uma falha que é suplício como de Tântalo. Prestes a saciar qualquer sede, mas incapaz de satisfazer o apetite mais corrosivo. O boneco é o homúnculo, o simulacro do ser humano, demasiado perto da figuração para ter apenas duas dimensões, longe demais dela para vestir a condição real. Esse é o condão da escrita, aqui assumido, reforçado, elevado à categoria de emblema. Coexistindo, em grande proximidade, com a importância simbólica desse artefacto por excelência da mistificação – a efígie do ser humano –, ergue-se uma fileira de realizações que operam prolongamentos e desvios adicionais. A presença de vocábulos como “ventríloquo” (20), ou “bastidores” (22), a insinuação de um “oculto alçapão” (37), a indicação de um “largar de máscara” (85), conduzem os sentidos em análise para o domínio da representação e de uma teatralidade nimbada de uma certa atmosfera sinistra. Algo que é, inclusivamente, sublinhado com ocorrência de maior explicitude – “desde o pano” (66); “Quase me esquecia/da deixa que me cabe” (69). A utilização inequívoca de uma fraseologia indexável à esfera teatral torna mais premente o fingimento, a dúvida, mesmo “o ludíbrio” (112).
            Será, afinal, de “uma escrita fantasma” (7) que aqui se trata? Há certamente boas razões para crer na sustentabilidade de tal formulação. Tanto mais que um quadrante de extrema importância, como a presença dos textos no texto, decorre, com alguma frequência, em ambiente quase espectral. Por exemplo, no poema “7, Quem, Se Eu Gritar?” (153), uma alusão a Rilke subsume-se num eco elíptico nunca completado. O mesmo tipo de aproximação está presente num poema como “Resistência Passiva” – “Os meus poemas não/sabem que eu existo” (75) –, que faz referência velada ao Jorge Luis Borges de “Os Meus Livros” – “Os meus livros (que não sabem que existo)/São uma parte de mim”. São participações fantasmáticas, que não se assumem sob a claridade do que se explana. Como cameos, aparições fugazes, icónicas, mas cheias de ironia. Qual um Hitchcok a pontuar, com a sua fuga quase inconspícua, uns escassos fotogramas dos seus filmes. Passagens circunspectas mas de lastro impressivo, como o poema que recupera o prólogo de Borges a Bartleby, o Escrivão. (Ainda que Ricardo Gil Soeiro considere “Mallarmé e Borges presenças indiscretas em O Alfabeto dos Astros[2]). É sobremaneira importante a presença da criação de Melville. Ela constitui núcleo do conjunto “Bartlebys Reunidos”, coligido em Palimpsesto. O próprio poema assume o legado, afirmando-o como nome de uma condição reiterada na poética explicitamente em causa escrita – “Quase Bartleby, sem rasgos de heroísmo,/ da janela do meu casulo morto espreito” (88). Como é sabido, o escrivão criado por Herman Melville é o artífice máximo da reticência, o epítome do espírito de negação. Ao recusar-se fazer determinada tarefa, proceder de certa forma, ao afirmar a sua quase neutral negativa – “Preferia não o fazer” –, Bartleby está a inaugurar uma genealogia a que é, naturalmente, alheio, mas à qual o génio de Enrique Vila-Matas (entre outros) viria a assegurar perenidade. Príncipe da hesitação e do recuo, um Hamlet da burocracia – antepassado dos que não irão escrever. Os poemas de Palimpsesto não hão-de deixar de repercutir a magia negra da recusa, o seu enlevo obscuro, afogadiço – “É sobre isto, e muito mais,/que não escreverei” (159).
            Na obra de Ricardo Gil Soeiro – Palimpsesto não é excepção – ensaísmo e prática literária confinam numa contiguidade própria. Há recorrência autorais e, dentro delas, incidências particulares que se repetem, uma orientação para os mesmos princípios metodológicos. Parece inevitável ver aqui a poesia como manifestação possível e refractada, sintetizada, do ensaio. E, neste, conceber um desenvolvimento metódico e sistemático de uma viagem à raiz dos gestos culturais e da sua envolvência relacional. Um pêndulo em tudo equivalente ao que, num ensaio introdutório a um dos seus livros de poemas, o autor concebeu como “diálogo entre dizer poético e dizer filosófico.”[3]
            A propósito de Enrique Vila-Matas, e da sua relação com Jorge Luis Borges, fala Soeiro do “parasitismo literário” do escritor catalão e das suas “poéticas enciclopédicas.”[4] Pronunciando-se sobre as práticas de escritas de Vila-Matas, dirá: “Como no inominável beckettiano, as vozes são feitas de palavras dos outros: não podendo continuar, continuamos.”[5] O que o leva a conceber os livros do autor de O Mal de Montano como “histórias portáteis da literatura.”[6] Como não perceber no binómio ensaio-poesia, levado à prática por Ricardo Gil Soeiro, uma expressão aproximada deste mesmo primado? Uma poesia que concebe, na grelha multímoda da arte precedente, um precursor problemático – porque não linear – de ulteriores desenvolvimentos. Uma poesia, enfim, que ocupa o seu lugar como herdeira pronta para a discórdia na assembleia dos sucessores ao “cargo das palavras.”[7]



[1] Ricardo Gil Soeiro, Da Vida das Marionetas [Para uma Dramaturgia do Corpo Inanimado], Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2012; Bartlebys Reunidos [Para uma Ética da Impotência], Porto, Deriva Editores, 2013.
[2] Idem, Constelações do Coração, São Mamede de Infesta, Edium, 2011.
[3] Idem, ibid.
[4] Idem, A Sabedoria da Incerteza - Imaginação Literária e Poética da Obrigação, Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2015.
[5] Idem, ibid.
[6] Idem, ibid.
[7] Idem, O Alfabeto dos Astros, Edium, São Mamede de Infesta, 2010.