WITTGENSTEIN, Ludwig, Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer, Edição, tradução e notas de João José de Almeida, Introdução e revisão da tradução de Nuno
Venturinha, Coordenação de Bruno Monteiro, Deriva Editores, Porto 2011. 116 pp.;
ISBN: 9789729250859.
A estranheza do comum
O ano de 2011 marca os sessenta anos da morte de Ludwig Wittgenstein; esta
publicação das Observações sobre «O Ramo Dourado» de Frazer (Bemerkungen über
Frazers Golden Bough), devida à iniciativa de Bruno Monteiro, sociólogo do Instituto
de Sociologia da Universidade do Porto e coordenador do volume, assinala a data. A
tradução do alemão é da autoria de João José de Almeida, a partir dos manuscritos e
dactiloscritos editados pelo Arquivo Wittgenstein na Universidade de Bergen. A introdução
e a revisão da tradução são da autoria de Nuno Venturinha, reconhecido especialista,
a nível internacional, no Nachlass wittgensteiniano. Não se poderia esperar mais da
qualidade da edição.
Para quem, como eu, estuda e ensina Wittgenstein, sobretudo a partir da filosofia
da mente e da linguagem, e portanto sobretudo a partir do Tractatus e das Investigações
Filosóficas, este livro Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer (que aliás não foi
escrito como um livro) é quase um objecto estranho. Mas, por isso mesmo, é um
objecto muito interessante e muito revelador dos muitos usos de Wittgenstein para
pensar sobre o pensamento – desde pensar sobre o que estamos a fazer quando fazemos
lógica até pensar sobre o que estamos a fazer quando fazemos antropologia.
Aliás, Wittgenstein pode ser útil até para pensar sobre pensamento social e político:
foi muito interessante saber que Bruno Monteiro, o grande motor por trás desta publicação,
foi levado pelo seu tópico de investigação – os grupos políticos dos extremos do
espectro, cujas propostas se afastam do ‘centro’ por dependerem de nuances – a interessar-se
por Wittgenstein. Interessava-lhe a percepção e a discriminação, no sentido de
identificação minuciosa. Portanto (para falar a linguagem de Wittgenstein) interessavam-lhe
os fenómenos do ver-como, dos aspectos, e assim foi levado às Investigações e
aos escritos sobre cores. Em suma, também para pensar sobre fenómenos de percepção
social mais ou menos detalhadamente discriminativa interessa compreender como se
pode ver mais ou menos olhando para o ‘mesmo’.
Mas aqui importa não tanto a percepção política na nossa sociedade e sim a antropologia:
Sir James George Frazer, o autor de The Golden Bough – a study in magic and
religion, o livro que Wittgenstein comenta nestas observações, e que influenciou tanta
gente, desde B. Malinowski, até S. Freud, James Joyce, Ezra Pound ou T. S. Elliot, foi um
antropólogo escocês que estudou práticas religiosas ‘primitivas’, nomeadamente sacrificiais,
anteriores às religiões monoteístas organizadas e que no tempo em que publicou
The Golden Bough indignou muita gente por olhar de forma comparativa para a religião
e para a magia.
Mas se alguns contemporâneos puderam indignar-se com Frazer por causa de algo
como uma conclusão não explícita, que era a persistência no cristinianismo de ritos e
superstições de práticas protoreligiosas, ou mágicas, primitivas, Wittgenstein aborda-o
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quase do ângulo contrário: uma importância mais imediata destas Observações Sobre o
Ramo Dourado de Frazer é o facto de elas contestarem uma certa forma racionalista-
‘progressista’ (hoje diríamos ocidentalocêntrica) de fazer antropologia, de olhar para
práticas sociais muito diferentes das nossas. O que perturba Wittgenstein é isto: o que
estamos nós a fazer quando vemos povos e práticas como primitivos e, por serem primitivos,
alien? (estranhos, demasiado estranhos, muito diferentes de nós, este ‘nós’ dito de
forma normativa). Porque é que Wittgenstein diz com todas as letras que o antropólogo
escocês James G. Frazer é ‘mais selvagem do que os selvagens de que fala em The Golden
Bough’? Devo dizer que fui atrás do “Ramo Dourado” e o livro não é à primeira vista tão
absurdo como Wittgenstein nos faz pensar – é um livro de descrições de práticas
mágico-religiosas, e quem o escreveu pensava pelo menos que valia a pena escrever sobre
essas práticas: sobre o rei dos bosques, o rei-sacerdote, a magia simpática, o totemismo,
o tabu, práticas em partes diferentes do globo e de épocas muito distantes entre si, desde
povos que antecederam os Romanos na actual Itália, até esquimós e nativos australianos.
Para responder a esta questão (Porque é que Wittgenstein diz com todas as letras
que o antropólogo escocês James G. Frazer é ‘mais selvagem do que os selvagens de que
fala em The Golden Bough’?) de forma mais aprofundada teríamos que falar de muitas
coisas. Seria importante, nomeadamente, compreender, além das ideias de Wittgenstein
sobre lógica, linguagem e pensamento, as suas ideias acerca de progresso, acerca de
moralidade, de religião e de ciência. Um ponto de partida aqui seria a célebre citação de
Nestroy que aparece em epígrafe nas Investigações. ‘O progresso é sempre menos do que
imaginamos’ (Überhaupt hat der Fortschritt das an sich, dass er viel grösser ausschaut,
als er wirklich ist. / O progresso tem isto em si, que parece sempre muito maior do que
aquilo que realmente é). A citação é de Nestroy, um cantor, actor e dramaturgo austríaco
do século XIX. Ou então a sua impaciência perante, por exemplo, a filosofia utilitarista,
que via como um bla bla bla racionalista em ética. As referências permitir-nos-iam
compreender melhor a sua dúvida enorme perante a ideia de uma progressão mito-religião-ciência
como constituindo um progresso não problemático das formas de vida e
pensamento humano. Vou propor aqui uma chave: uma coisa que temos de saber sobre
Wittgenstein para percebermos o incómodo perante Frazer que estas Observações expressam
é que Wittgenstein vê o olhar do filósofo sobre as nossas próprias formas de vida
como o olhar de um antropólogo. Noutras palavras, também em filosofia se analisa e
descreve práticas e a estranheza não começa lá fora, com outros povos e outros tempos,
antes começa nas nossas próprias práticas – o filósofo americano Stanley Cavell, fala da
descoberta wittgensteiniana da ‘estranheza do comum’. É esse o objecto do olhar do filó-
sofo – pensemos por exemplo em nós próprios, aqui e agora, ordeiramente reunidos,
sentados, com o pretexto da apresentação de um livro [este texto foi originalmente escrito
para o lançamento da tradução do livro], no contexto de um ritual de universidade.
Invertendo o famoso motto de Marx (que é aliás de Terêncio), tudo o que é humano
(me) é estranho, poderíamos pensar. Como Cavell gosta de sublinhar, a imagem wittgensteiniana
do filósofo é a de um explorador de uma tribo desconhecida – só que essa
tribo somos nós, forasteiros e estranhos a nós próprios. Mas em que sentido é que tudo
o que é humano é estranho? Stanley Cavell, em The Claim of Reason, fala da ‘descoberta
de Witttgenstein’: essa descoberta é a convencionalidade da natureza humana ela
própria, a convencionalidade daquilo que faz de nós humanos. Esta intersecção do famiRevista
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liar e do estranho, partilhada pela antropologia, pela psicanálise, pela filosofia, é o lugar
do comum. Ver o comum como estranho – a Unheimlichkeit freudiana – é perfeitamente
possível. Não são só os aliens que são estranhos: nós somos estranhos, a cada
instante podemos sentir-nos perplexos com aquilo que os humanos dizem e fazem
enquanto humanos. Frazer não vê isto e é isso que incomoda Wittgenstein. Ele pensa
que o nosso comum é normal mas o comum do povo do sacerdote de Nemi é estranho.
Frazer tem uma visão teleológica à la Hegel (aliás Hegel aparece no fim do Ramo
Dourado, mais especificamente as passagens sobre religião das suas Lições sobre a Filosofia
da História). É isto que Hegel simboliza em filosofia, a visão da história como teleologia:
um povo levando o facho da história, depois decaindo e passando o facho a outro
– e quem não está a levar o facho da história é secundário ou despiciendo. Hegel pôde
dizer, no seu tempo, ‘eu vi o Espírito do Mundo entrar a cavalo na cidade’ – era
Napoleão, como antes tinham sido os Gregos, os Romanos, ou o Cristianismo, mas
certamente não todos os povos contemporâneos destes povos, não todos os movimentos
contemporâneos desse movimentos, pois não ‘transportavam a luz’. É isto que
Wittgenstein não aceita: «A apresentação de Frazer das concepções mágicas e religiosas
dos homens é insatisfatória: ela faz com que essas concepções apareçam como erros».
«Estava então Agostinho errado quando evocava Deus em cada página das Confissões?
Mas – pode-se dizer – se ele não estava errado então quem estava era o santo budista –
ou outro qualquer – cuja religião expressa concepções completamente diferentes. Mas
nenhum deles estava errado. Excepto quando afirmava uma teoria» (p. 29) «A ideia de
explicar um costume (porventura a morte do rei-sacerdote) parece-me equivocada (aqui
só se pode dizer e descrever: a vida humana é assim)» (p. 31).
O que é o isto ser assim que só se pode descrever? Um princípio de resposta poderia
ser encontrado em Wittgenstein e na forma como Wittgenstein fala de ‘acordo na
linguagem’ para falar daquilo a que acima chamei o comum: este acordo não é um
acordo quanto a opiniões (falamos, discutimos explicitamente, argumentamos) mas um
acordo na linguagem e em formas de vida (estamos aqui sentados, vestidos, calados,
circunspectos, num lugar que concebemos como de saber, pensando nestes sons que
emitimos como tendo significados – nada disso nós discutimos explicitamente – não é
uma questão de opiniões, mas de formas de vida).
Não sei se estão aqui muitos filósofos, no entanto queria dizer uma palavra para
filósofos: que esta dimensão de acordo e convencionalidade, que está em causa quando
se pensa na filosofia como visando práticas, é algo de importante de um ponto de vista
filósofico. É importante de um ponto de vista filosófico porque é importante para
pensarmos sobre método – para pensarmos sobre o que estamos a fazer quando pensamos
sobre a nossa forma de pensar, desde a lógica até à ética e à estética. Quando se fala
em Wittgenstein como mostrando a importância do comum para a filosofia isto, na
história da filosofia do século xx, significa por exemplo uma oposição à ideia de que
linguagens formais revelam a essência da linguagem e uma natureza ontológica última
da realidade. Não é que haja problemas com fazer lógica, analisar a linguagem, fazer
investigações ontológicas – os filósofos fazem tudo isto constantemente. A questão é que
as coisas são mais complicadas do que simplesmente descobrir o esqueleto por detrás da
aparência, por exemplo usar linguagens formais para analisar a linguagem comum. Isto
foi muito importante na filosofia do século XX, sob o impacto da lógica formal e
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Wittgenstein não acredita nisso, da mesma forma que não adere a Frazer – nem essência,
nem finalidade.
Por vezes diz-se que Wittgenstein era um anti-modernista – tivemos ainda há bem
pouco tempo aqui na FLUP um filósofo australiano de Sydney, David Macarthur, que,
para além de ter vindo falar-nos sobre a natureza dos juízos estéticos, fez uma conferência
sobre a casa de Wittgenstein (a casa que ele construiu em Viena, na Kundmangasse,
para a sua irmã, a socialite vienense Margarethe Stonborough). Sem entrarmos na discussão
dos gostos artísticos de Wittgenstein, podemos dizer no mínimo que ele era um
céptico quanto a progresso – basicamente ‘O progresso é sempre muito menos do que
aquilo que pensamos’, como disse Nestroy. O que procurei aqui explicar foi que a reac-
ção a Frazer que está nestas Observações vem em parte daí, e também da ideia de que
quando descrevemos práticas humanas o nosso objecto é o acordo em formas de vida, e
não em juízos ou opiniões conscientes e explícitos. Fundamentalmente, nós não somos
o pináculo de uma progressão, nem o único ponto de vista sem ponto de vista. E Frazer
está, segundo Wittgenstein, demasiado próximo de pensar que somos.*
Sofia Miguens
(Departamento de Filosofia e Instituto de Filosofia
da Universidade do Porto)