terça-feira, fevereiro 03, 2009

Discurso de Capitulação (um tanto romanceado), por Inês Silva


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos a ratos

Alexandre O'Neill


Pois, assim é, lamentavelmente chegou a minha vez de chegar «a rato»: entreguei os OI simplex. Sonhei, como o extraordinário Vicente de Torga, poder recusar a degradação da barca da obediência envergonhada a um poder superior que humilha os seus "servos", e como ele «Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção.». Por isso, esperava tranquilamente as consequências previstas: ficar mais dois anos sem subir na carreira, ver colegas do mesmo grupo que tivessem obtido o Muito Bom ou Excelente passar à minha frente nos concursos; não seriam de miséria as minhas finanças, não seriam assim tantos os colegas que me ultrapassariam. O que mudou:Ontem, uma colega contou-me que a presidente da escola andava a ameaçar com procedimentos disciplinares, mostrando-lhe o seguinte, sublinhado:


Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro
Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas
Artigo 17.ºSuspensão
A pena de suspensão é aplicável aos trabalhadores que actuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais e àqueles cujos comportamentos atentem gravemente contra a dignidade e o prestígio da função, nomeadamente quando:....
g) Desobedeçam escandalosamente, ou perante o público e em lugar aberto ao mesmo, às ordens superiores;
i) Violem os procedimentos da avaliação do desempenho, incluindo a aposição de datas sem correspondência.....

Depois li no Expresso que o presidente do CE tinha comunicado a uma colega que os dois anos não só não lhe seriam contados para efeitos de progressão (entenda-se, subida de escalão) como não contariam para tudo o mais, ou seja, perderia dois anos de serviço, com consequências devastadoras na graduação, arriscando-se a ver passar à frente centenas de colegas, ou mesmo milhares, num grupo como o meu, e a ficar numa posição muito delicada.Entretanto, o meu algo surdo pai, com tanta conversa telefónica sobre as consequências e os cenários mais dramáticos, assim como a vontade de manter a coluna vertebral erguida, apercebeu-se finalmente do que eu estava a pensar fazer, olhou para mim, com a sua respeitável cara de 82 anos, perguntando-me silenciosamente: «Vais arriscar a casa que foi construída pelas minhas mãos, onde nasceste, que te dei para que a recuperasses e mantivesses na família, por orgulho?». Não creio que fosse para tanto, mesmo com a suspensão, sempre me aguentaria uns tempos. Mas senti que não tinha o direito de pôr, nem que fosse numa hipótese muito remota, em causa o seu bem estar, o tecto a que tem direito, porque, na verdade, a casa financeiramente é do banco, moralmente é dele, eu só tenho uma dívida de cem mil euros. Afinal também tenho laços que me prendem a responsabilidades. E eu queria ser radicalmente livre como Vicente, sem amarras. Ao contrário do impressionante conto de Torga, em que a tenacidade de Vicente venceu a vontade de Deus - «Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.» -, as últimas notícias do meu "Deus" eram cada vez mais preocupantes. Fui eu, portanto, a ceder e a juntar-me a vós nessa barca do desalento. Entreguei hoje os OI individuais ao Carlos, que a bem da verdade já me tinha tentado alertar para as consequências e, generosamente, os aceitou. É mais um espírito que se verga «Neste país do pouco» (Manuel Alegre). E eu que queria ser o "tu" da Sophia («Porque os outros têm medo mas tu não», lembram-se?), que queria gritar:


Que não é possível suportar tanta mentira
tanta gente de esquerda a viver à direita
tanta apagada e vil baixeza tanta reza
tanto cochicho onde é preciso falar alto.
Neste país a salto. Neste país a salto.

(...)

Pois falta aqui o verbo ser. E sobra o ter.
Falta a sobra e sobra a falta. Ó proletários da tristeza
falta a ciência mais exacta: a poesia.
E há muito já que um poeta disse : É a Hora.
Neste país de aqui. Neste país de agora.
Manuel Alegre, «PAÍS EM inho»


Deu-me o destino a culpa de ter uma memória literária cheia de ética e de valores lá dentro. O meu index da vergonha vai ser enorme: tantas palavras literariamente impressivas e eticamente elevadas me vão fazer sentir a última das criaturas se ousar lê-las com os alunos. Só escamoteando drasticamente o meu cânone do gosto e escolar é que poderia fugir à confrontação. Não mais Camões, não mais Eça, não mais Pessoa, não mais Saramago, não mais Cesariny, não mais Maria Velho da Costa, não mais Ruy Belo, não mais José Cardoso Pires, não mais Herberto, não mais Ruben A, não mais Nuno Bragança, não mais... Não mais tanta da "gente lá de casa"... E nem assim, as palavras silenciadas estarão sempre na minha memória. Que país é este que nos obriga à cobardia? Que homens somos que não encontramos nenhum 25 de Abril por dentro de nós quando é preciso resistir? Eu sei que:


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Ana Hatherly

Não fui capaz. Desculpem por me trair, por, de alguma forma, vos trair. Em anexo mando-vos a declaração que entreguei juntamente com os OI, para que fosse entregue à Tutela. Eu sei que não serve para nada. Mas pelo menos aquilo tinha de dizer, um pouco como o balbucio de Galileu quando abjurou («Et por se muove»), apenas como reafirmação das convicções, vazias já porque se capitulou. E não se preocupem, tenho Olcadil para dormir. Desta vez preveni-me. Até para a semana.

Inês Silva