terça-feira, março 06, 2007

Carta a uma amiga

Moebius

Como estás? Deixaste-me um mail indignado com o que se passou em Santa Comba e o caso não é para menos. Vi, de soslaio porque o estômago não permite (certamente por cansaço) o olhar de frente para a ignomínia, as gentes que gritavam por Salazar. Não me admirou que não fosse a extrema-direita a organizar o evento que é sempre espontâneo, nestas ocasiões. Portugal desde há anos, desde sempre, guarda dentro de si esta vocação para a ordem e bem-estar, para a couve, a sardinha e a sopa dos pobres, para o trabalho honesto e poupadinho, para as mulheres submissas e obedientes, castigadas e humilhadas e, quando é preciso, fatalmente violentadas por companheiros desgraçadamente ciumentos que compõem a «vida» com que nos cosemos e, pela qual, um primeiro-ministro já se pôs a milhas. A milhas também pusemos nós levas sucessivas de emigrantes que engordavam os bidonvilles de Paris e as contas bancárias de angariadores de lá e de cá. Nunca quisemos saber deles e gozávamo-los quando cá vinham em férias (talvez as primeiras das suas vidas). Tratámos mal os nossos putos, batendo-lhes e educando-os à boa maneira portuguesa, entre escândalos de estado e os vícios privados. Sempre fomos bons a cultivar a violência com um leve sorriso cristão na boca. Nunca soubemos a verdadeira dimensão dos bufos da Pide e da panóplia incrível de gente que alimentou a melhor polícia política do mundo, como orgulhosamente se dizia, então. Ficou-nos, desse tempo, o anonimato e a denúncia, a inveja e o contentamento alvar pela maldade e pelo boato. Ficou-nos do futebol e da alienação dos copos de domingo, as claques organizadas de seres simiescos e dos santuários de fátima, as campanhas pela «vida». Dos filmes de Leitão de Barros e do Santana, ficou-nos a telenovela salvadora e o filme da treta que nos faz rir. Os parodiantes deram lugar aos malucos do riso. O mofo e o bafio estão aí e, em Santa Comba, erige-se um novo santuário de fascistas anónimos. Já andaste, em Berlim, pela avenida Hitler? Em Roma, no Museu Mussolini? Já foste à Alameda Francisco Franco, em Madrid? Deixa que te diga que nunca, mas nunca, nos deixámos levar por essas toponímias. Existe um bairro Salazar? Ou rua Dr. António Oliveira Salazar? Claro que sim. Somos todos democratas, não somos?

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