Cavalo de Ferro, 2021. Tradução de Luísa Benvinda Álvares
Começa-se a ler «A Presa» e pressente-se que a tensão irá aumentar porque os riscos assumidos pelas personagens são visíveis. É evidente que não conseguimos afastar a sua leitura. São vários os motivos: em primeiro lugar, o romance desenvolve-se em 1933, numa França exaurida e com ondas de choque da crise de 1929 nos EUA que, como sabemos, chega tarde ao país devido à autarcia económica e ao nacionalismo. O desemprego e a ausência de políticas sociais são uma realidade. Depois, porque estamos perante um demoliberalismo que exibe a sua própria autodestruição política antes da tomada do poder, por eleições, da efémera Frente Popular. Finalmente, porque Irène Némirovsky sabe, como ninguém, ou seja, por experiência própria, o que a casa gasta no que respeita às lutas intestinas partidárias e financeiras protagonizadas por uma burguesia que perdeu o pé, pensando que a aposta no apoio ao totalitarismo é a única saída. A época que se viveu entre as duas guerras mundiais dão-nos lições que não deveremos nunca esquecer e lembrar-nos como tudo começou, sendo que este «tudo» traduz-se em perto de 100 milhões de mortos nas duas guerras mundiais, para além de cidades arrasadas e de traumas que ainda hoje pagamos, provavelmente sem o sabermos ou errando o diagnóstico da crise social que hoje atravessa o planeta.
Dizia atrás que Irène Némirovsky sabia, por ser testemunha privilegiada, o mundo burguês que a rodeava. Infelizmente, foi isso que aconteceu e sabemo-lo lendo «A Presa». Filha de um banqueiro rico e ucraniano judeu, nasceu em 1903 tendo fugido, jovem, da Rússia soviética quando da revolução de 1917. A viagem passou pela Finlândia, atravessou a Europa e fixou-se finalmente em Paris. A família, pelo que se percebe continuou com a sua actividade banqueira, conhecendo os meandros dos favores políticos e das transacções especulativas financeiras em França que ela descreve como ninguém em «A Presa». De um modo miserável, o regime de Vichy entrega-a aos alemães que a matam em Auschwitz com apenas 39 anos. Por ser judia.
A narrativa de «A Presa» centra-se na vida de Jean-Luc Daguerne, um pequeno ambicioso, empobrecido pela crise económica, sem emprego, mas que consegue gizar um plano de subida social através de um casamento de conveniência com uma jovem filha de um banqueiro. Todos os passos que dá são calculados ao milímetro, sem que mostre qualquer remorso nas consequências nefastas das suas escolhas para todos os que o rodeiam. Neste caso, a anomia social, a indiferença, o desprezo pelo outro ou pelo sofrimento social, sentimentos que tolhem a Europa entre as duas guerras, é totalmente representada por Jean-Luc Daguerne que cai ruidosamente em si, ainda a meio da vida, quando não consegue o que quer. Perde tudo e acaba com a sua vida, metáfora certeira do que aí vem. A densidade psicológica das personagens são, igualmente, o que dá vida a este romance. Mas interessante é, igualmente, verificar os caminhos ínvios e corruptos de uma política parlamentar já gasta, de todo previsível, cansada, intimamente ligada à banca e jogando com ela. Neste caso as pessoas nada são, tornam-se engrenagens eleitoras, um mecanismo legitimador de um regime em queda.
«(...) Esse Langon, esse Abel Sarlat, esse Lesourd, adversário de Langon na Câmara dos Deputados, mas que jantava com ele em casa dos Sarlat e o tratava por tu, eram, contudo, eles que dispunham dos bens do regime, eram eles que controlavam as saídas para a liberdade, para o dinheiro, para o poder. Eram aquilo que nunca estivera ao alcance de Jean-Luc: boas relações. Que designação tão simples para uma coisa tão grande! Conheciam todas as plavras-chave...Para eles, nada era difícil, tudo ficava aplanado, suave, entreaberto. Agradar a Langon, a Lesourd, a Sarlat pouparia a Jean-Luc anos de espera, de vãs humilhações. Quando deixava Édith e se encontrava outra vez na rua, depois de um baile, ou no sombrio Ludo, começava a pensar naqueles homens. É certo que eles já o conheciam, mas ele entrava nas suas casas pela porta pequena, reservada à juventude...» (pág.62ee)
Jean-Luc Daguerne não cabe na definição de libertino que coloca os cânones morais em jogo como, por exemplo, um Barry Lyndon, um Sade ou uma personagem de Roger Vailland. É, antes, um Julien Sorel, de «O Vermelho e o Negro» de Stendhal, um arrivista cuja falta de escrúpulos estão em sintonia com a sua época, que não se lhe opõe, antes pelo contrário, quer pertencer-lhe. Aliás, não sei se a presa será Édith Sarlat, filha do banqueiro que casa grávida com Jean-Luc e que após o divórcio se volta para os seus, os de sempre, ou o próprio Jean-Luc que no caminho ínvio que traçou para o seu elevador social, baqueia e fere-se de morte. A presa será ele, não os que ele julga dominar.
Irène Némirovsky tem outros livros publicados em Portugal que valerá a pena conhecer: «O Caso Kurilov», «Dois», «David Golder»...