quinta-feira, março 25, 2021

Quem com faca nos dentes anda, a bom porto há-de parar. A poesia de António José Forte

António José Forte. Foto de Aldina

Poeta sem sombras, luminoso, de índole revolucionária, conhece-se pouco de António José Forte não fossem a Parceria A.M.Pereira, a Hiena, a &etc e a Antígona do amigo Luís Oliveira, que agora publicou a sua poesia «completa», mais Cesariny, Virgílio Martinho, Eugenio Castro e Aldina a darem-lhe a visibilidade merecida. Tal como Dacosta, Forte esteve uma interregno de dezenas de anos sem nada publicar, o que não o impedia de escrever. E só o facto de saber que escrevia abre todo um leque de possibilidades de virmos a conhecer melhor este poeta surrealista do Grupo do Café Gelo. Aliás, escreveu um texto belíssimo sobre os cafés de Lisboa onde se lhe refere. Herberto Helder prefaciou «Uma Faca nos Dentes» e Luís Oliveira fala do contacto que com ele teve em Santarém e Lisboa, quando António José Forte calcorreava o país com as Citroën das bibliotecas volantes da Gulbenkian. Helder coloca-o como um dos grandes poetas «Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imaginística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos.»; palavras, expressões feitas de fragmentos e colados no poema que atinge o(s) sentido(s) «num continuum, sempre perfeito, denota[ndo] a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta.» (HH). Mas António Cândido Franco, num excelente e interessante texto sobre a publicação castelhana de «Uma Faca nos Dentes» vê-o deste modo: «Trata-se de um poeta invulgarmente coerente, que deixou uma obra breve mas pontuada de sinais vivos e imperecíveis - e não tanto pela grandeza da arte, que lhe foi quase indiferente, mas pela potência ingénita do sopro. O que é admirável no seu verbo é a força da imprecação, a destemperada fúria da voz, a altivez do tom profético e apocalíptico a denúncia e o combate.» (Revista A Ideia, nº90,91,92,93, pág. 314).

Já, nós mesmos, queremos então apontar-vos a «destemperada fúria» de António José Forte com um excerto de «EXPOSIÇÃO DADA» direccionada para os falsos avestruzes que pedem emprestados o nome DADA para servirem à mesa de divindades académicas com que se alimentam de tempos a tempos em realizações que têm tanto de basbaque como de ridículo. 

Ora tomem lá do Forte:

EXPOSIÇÃO DADA

(...) Se houvesse cadáver DADA, mas não há, o que vai chegar agora aí embalsamado seria um falso cadáver. Se houvesse cadáver insepulto de DADA, cheirava mal num continente inteiro. Se houvesse cadáver de DADA enterrado em vala comum, havia ainda hoje fogo-fátuo que dava para iluminar uma cidade - exemplo, Lisboa. Como não cheira e tudo permanece muito às escuras, segue-se que não há cadáver de DADA.» («Uma Faca nos Dentes», Ed. Antígona, 2017, pág. 124)

DENTE POR DENTE

«Entrar de costas no festival das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.» (Op.Cit., pág. 47)

RESERVADO AO VENENO

«...é um dia perfeitamente para cães...» (Op.Cit., pág. 34)

QUASE 3 DISCURSOS QUASE VEEMENTES

«Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa.» (Op. Cit. pág. 27)

E assim se faz forte ainda incompleto.

António Luís Catarino