VS. Editor. 2022. Tradução de João Coles
Furio Jesi faleceu em 1980, precocemente aos 39 anos deixando-nos, contudo, uma obra ensaística significativa principalmente na questão do conceito de mito. «Spartakus, Simbologia da Revolta» debruça-se sobre os mitos da esquerda, os que sempre acompanharam a construção utópica de sociedades livres em que a esquerda se viu envolvida, mesmo com erros inerentes à aplicação prática numa dada realidade social em ebulição. Furio Jesi parte da revolução espartaquista, entre Dezembro de 1918 e Janeiro de 1919, para notar que o mito já existe no próprio nome da Liga Espartaquista que vai ser o gérmen do KPD e que lembra a revolta dos escravos liderada por Espártaco contra o Império Romano. Reside aqui o mito que guiou Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt a participar numa revolta que, paradoxalmente, não acreditavam poder ganhar mas que serviu de estímulo para a construção de uma sociedade livre. Para além do sacrifício, talvez desnecessário (por uma análise incorrecta da correlação de forças em campo) dos revoltosos alemães, perpetrado pela social-democracia de Ebert, Furio Jesi expande as suas considerações sobre o que distingue uma revolta de uma revolução. Enquanto que, na primeira, existe uma suspensão do tempo histórico, na revolução há uma apropriação desse mesmo tempo. Uma destrói, a outra constrói e é nessa destruição que existe a suspensão, pela violência e pela identificação próxima com o outro, de uma realidade que se quer outra. A revolução retoma o tempo normal, sob outras formas, é certo, mas a construção de um tempo é um dos objectivos não escondidos de qualquer revolução. Assim foi em 1789 e em 1917.
A esquerda actual vive igualmente de mitos. O mito da comuna de 1871, dos conselhos de 1918/19, da Guerra Civil de Espanha de 36/39, do Maio de 68, da guerrilha de Che, mas não deixa de ser sintomático que essa identificação do mito persista nos derrotados e não nas revoluções vitoriosas, como a de 1917. Compreende-se que o sangue derramado dos heróis, construa uma identificação psicológica forte quando a derrota foi o culminar das suas utopias.
A esquerda, não por acaso, deixou de ser subversiva, dispensando a propaganda como coisa de nazis e fascistas, não compreendendo que ela foi uma das razões que uniu (e ganhou) camadas de gerações revolucionárias em torno de uma ideia comum. Hoje acantonou-se no parlamentarismo deixando para outros a construção de uma sociedade mais livre. A subversão deixou de fazer sentido para largos estratos da esquerda, receosa de perder votos afirmando-se como uma espécie de corpo bem-comportado em debates que julga fracturantes, mas que não são mais do que o caminho óbvio da evolução das liberdades. O tempo aqui não será suspenso, porque não há revolta que lhe valha com estes pressupostos.
De Furio Jesi:
«Podemos amar uma cidade, podemos reconhecer as suas casas e ruas nas nossas mais remotas ou mais caras memórias, mas só na hora da revolta sentimos verdadeiramente a cidade como nossa: nossa, por ser do eu e aos mesmo tempo dos ''outros''; nossa, por ser campo de uma batalha que se escolheu e que a colectividade escolheu; nossa, por ser espaço circunscrito no qual o tempo histórico está suspenso e no qual cada acto vale por si só, nas suas consequências absolutamente imediatas. Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando na alternância das investidas, muito mais do que brincando, quando crianças, nas suas ruas, ou passeando por elas mais tarde com uma rapariga. Na hora da revolta já não estamos sozinhos na cidade.» (pág.77)
alc
