segunda-feira, dezembro 08, 2025

"Um Saco de Ossos", Maria Lis

 
Língua Morta, 2025

Maria Lis não deixa de nos surpreender com este seu terceiro livro de poesia. Revisitando Georgia O'Keeffe, leva-nos por extensas caminhadas em espaços improváveis no Novo México, no Texas ou ainda em Nova Iorque, deixando-nos uma quadrícula onde pontificam cores, pedras, águas, plantas. A cor está sempre presente dum modo quase obsessivo «...perguntas-me pela música vou respondendo por cores / as palavras não levam a melhor...» e a matéria e a forma de tudo o que nos rodeia, inertes ou vivas, atravessam os poemas «...por ora pinto flores / já que a realidade não precisa de ajuda / posso dedicar-me por inteiro à forma / é que a cor, o âmago, o cheiro / vêm com cada coisa de jeitos torcidos e grotescos...», deixando-nos embrenhados numa mundividência singular protagonizada por O'Keeffe e assenhoreada poeticamente por Maria Lis. Essa osmose, essa junção, é realizada por uma comunicação epistolar baseada provavelmente (soubemo-lo, mais tarde, pelo posfácio) pela correspondência com uma amiga e que a poeta adquiriu num alfarrabista de Santa Fé. 

É um livro de poesia que não nos deixa indiferentes, tal como o seu posfácio: violentamente, Maria Lis atropela-nos com a nossa derrota muitas vezes não assumida, na impossibilidade de questionamento político, na eterna fénix capitalista que se ergue sempre vitorioso, retirando-nos a possibilidade de uma vida própria. Resta-nos a fuga ou a poesia dos sentidos. Como este livro.

alc.

sábado, dezembro 06, 2025

"Oráculo Portátil e Arte da Prudência", Baltazar Gracián

 

VS. Editor, 2021. Tradução de Miguel Meruje
«Oráculo Portátil e Arte da Prudência» é um livro que se deve ler devagar. Baltazar Gracián oferece-nos um conjunto de conselhos em forma de aforismos que nos leva a pensar sobre a arte de viver num mundo intemporal onde vinga a ignorância, a culpa, a maledicência ou, entre muitas outras iniquidades, a cupidez e o embuste. A estupidez e a ousadia dos incompetentes também têm um lugar destacado, mas, ainda assim, sobressaem os remédios para as esconjurar.

Gracián sabe do que fala. Jesuíta, com evidências claras para a escrita e literatura, foi obrigado a vergar-se à disciplina férrea e militar da Companhia fundada por Loyola. Desde a proibição dos seus escritos pela Inquisição até à tortura a pão e água, aconteceu de tudo um pouco: censuras, privação de leituras de livros, prisão, proibição de uso de papel e plumas, não bastaram para a desistência deste homem luminoso. Ele sabia onde doía na sua luta contra a hierarquia e poderosos. Este livro destinava-se aos comuns, aos que labutavam pela sobrevivência num mundo «às avessas», não eram conselhos para príncipes que já tinham a sua maquia com Maquiavel, fosse este irónico ou subserviente. 

Talvez por isso foi lido e seguido, desde meados do século XVII. Assim o fizeram Voltaire, Schopenhauer, Nietzsche, Lacan, Phillipe Sollers ou Debord. Desenvolvido numa estrutura literária barroca, contemporâneo de António Vieira e Quevedo, soube aliar uma crítica política a um pensamento prático da vida comum, alicerçado em paradoxos, aforismos ou puro jogo de palavras rodeadas de brilho. Numa época em que as palavras são amiúde esvaziadas de sentido, não deixa de ser necessário voltar aos séculos de ouro da literatura. Gracián é um desses expoentes.

alc