Letra Livre, 2014. Tradução e notas de Júlio Henriques
Talvez um dos mais atacados e vilipendiados membros da Internacional Situacionista, de certeza aquele que mais sofreu na pele as invenções e maquinações que o poder de Estado francês (e não só) exerceu sobre uma pessoa. Guy Debord esteve a pontos de ser detido por assassínio do seu editor Gèrard Lebovici - uma outra história que um dia valerá a pena contar aqui - e isto tudo com a complacência, se não mesmo cumplicidade do poder mediático, da direita, obviamente, e de uma certa esquerda estatista que perdeu totalmente a vergonha perante a ignomínia do que disseram sobre ele: ''agente secreto ao serviço de interesses inconfessáveis, talvez americano ou talvez «soviético», avençado por um cunhado antiquário de Hong Kong, excepcionalmente rico que induziu estrategicamente o poder político a reforçar o seu poder, um homem que organizou as maiores violências do Maio de 68 incluindo as pichagens mais criativas (talvez haja alguma verdade, mas seria muito para um homem só), estalinista, nazi, um profeta ferido na sua deriva utópica, um tipo de gostos requintados comparando-o ao Cardeal de Retz de quem imitava a escrita''.
Acredito que é necessária muita imaginação para o insulto e a ofensa e para inventar factos totalmente falsos como este pequeno livro demonstra em defesa do próprio. E assim numas meras 96 páginas ficamos cientes do papel vergonhoso a que se prestaram aqueles que, não lendo, como é fácil de observar, «A Sociedade do Espectáculo» ou, mais tarde, os seus «Comentários...» atacaram o homem, não sem saírem completamente ridicularizados na desmontagem dessa tentativa por Guy Debord. Estão lá todos os nomes.
«(...) Nunca detestei os ricos pelo simples motivo de o poderem ser. Bastava-lhes saberem-se comportar com tacto suficiente; e com bastante estilo. Não teria eu sido muito mais censurável se a riqueza deste ou daquele indivíduo tivesse parecido impressionar-me? se lhe tivesse dado a pensar que podia influenciar-me por causa desse único detalhe? Ou que podia simplesmente falar comigo num tom mais alto? Creio que eles viram que não. Seja como for, nunca pensei de outra maneira, e agi em consequência como devia. Nunca fui rico; e também nunca tive de reconhecer-me como alguém necessariamente pobre. Nunca nada estava garantido. ''O tempo dos gonzos'', para o dizer em termos shakespearianos, e desta vez era verdadeiramente por toda a parte: na sociedade, na arte, na economia, na própria maneira de pensar e de sentir a vida. Já nada tinha medida. Acima de tudo, fui alguém desses tempos, mas sem partilhar as suas ilusões. Gabo-me de ter sobretudo raciocinado segundo o princípio que diz: ''A cavalo dado, não se olha o dente.'' Pratiquei o potlach com grandeza bastante para me não inquietarem algumas delicadezas excessivas.» (pág.58)
Sendo mais avisado ler os livros teóricos de Debord sobre a sua análise do mundo que há-de vir, deixo-vos este pequeno extracto extremamente visionário, escrito em 1993:
««(...) Por todo o lado, a especulação, para concluir, tornou-se a parte soberana de toda a propriedade. Autogoverna-se mais ou menos, segundo as preponderâncias locais, à volta das bolsas, dos estados ou das máfias, federando-se todos numa espécie de democracia das elites da especulação. O resto é miséria. Por toda a parte o excesso de simulacro explodiu como Chernobil, e por toda a parte a morte se espalhou tão depressa e tão maciçamente como a desordem. Já nada funciona, e já não se acredita em nada.» (pág.80)
Debord, doente, suicida-se um ano depois destas palavras premonitórias ainda os Calígulas e os Neros contemporâneos não tinham chegado ao poder e a mentira instalar-se em «toda a parte».
alc