quarta-feira, maio 28, 2025

«Esta Má Fama...», Guy Debord

 

Letra Livre, 2014. Tradução e notas de Júlio Henriques
Talvez um dos mais atacados e vilipendiados membros da Internacional Situacionista, de certeza aquele que mais sofreu na pele as invenções e maquinações que o poder de Estado francês (e não só) exerceu sobre uma pessoa. Guy Debord esteve a pontos de ser detido por assassínio do seu editor Gèrard Lebovici - uma outra história que um dia valerá a pena contar aqui - e isto tudo com a complacência, se não mesmo cumplicidade do poder mediático, da direita, obviamente, e de uma certa esquerda estatista que perdeu totalmente a vergonha perante a ignomínia do que disseram sobre ele: ''agente secreto ao serviço de interesses inconfessáveis, talvez americano ou talvez «soviético», avençado por um cunhado antiquário de Hong Kong, excepcionalmente rico que induziu estrategicamente o poder político a reforçar o seu poder, um homem que organizou as maiores violências do Maio de 68 incluindo as pichagens mais criativas (talvez haja alguma verdade, mas seria muito para um homem só), estalinista, nazi, um profeta ferido na sua deriva utópica, um tipo de gostos requintados comparando-o ao Cardeal de Retz de quem imitava a escrita''. 

Acredito que é necessária muita imaginação para o insulto e a ofensa e para inventar factos totalmente falsos como este pequeno livro demonstra em defesa do próprio. E assim numas meras 96 páginas ficamos cientes do papel vergonhoso a que se prestaram aqueles que, não lendo, como é fácil de observar, «A Sociedade do Espectáculo» ou, mais tarde, os seus «Comentários...» atacaram o homem, não sem saírem completamente ridicularizados na desmontagem dessa tentativa por Guy Debord. Estão lá todos os nomes. 

«(...) Nunca detestei os ricos pelo simples motivo de o poderem ser. Bastava-lhes saberem-se comportar com tacto suficiente; e com bastante estilo. Não teria eu sido muito mais censurável se a riqueza deste ou daquele indivíduo tivesse parecido impressionar-me? se lhe tivesse dado a pensar que podia influenciar-me por causa desse único detalhe? Ou que podia simplesmente falar comigo num tom mais alto? Creio que eles viram que não. Seja como for, nunca pensei de outra maneira, e agi em consequência como devia. Nunca fui rico; e também nunca tive de reconhecer-me como alguém necessariamente pobre. Nunca nada estava garantido. ''O tempo dos gonzos'', para o dizer em termos shakespearianos, e desta vez era verdadeiramente por toda a parte: na sociedade, na arte, na economia, na própria maneira de pensar e de sentir a vida. Já nada tinha medida. Acima de tudo, fui alguém desses tempos, mas sem partilhar as suas ilusões. Gabo-me de ter sobretudo raciocinado segundo o princípio que diz: ''A cavalo dado, não se olha o dente.'' Pratiquei o potlach com grandeza bastante para me não inquietarem algumas delicadezas excessivas.» (pág.58)

Sendo mais avisado ler os livros teóricos de Debord sobre a sua análise do mundo que há-de vir, deixo-vos este pequeno extracto extremamente visionário, escrito em 1993:

««(...) Por todo o lado, a especulação, para concluir, tornou-se a parte soberana de toda a propriedade. Autogoverna-se mais ou menos, segundo as preponderâncias locais, à volta das bolsas, dos estados ou das máfias, federando-se todos numa espécie de democracia das elites da especulação. O resto é miséria. Por toda a parte o excesso de simulacro explodiu como Chernobil, e por toda a parte a morte se espalhou tão depressa e tão maciçamente como a desordem. Já nada funciona, e já não se acredita em nada.» (pág.80)

Debord, doente, suicida-se um ano depois destas palavras premonitórias ainda os Calígulas e os Neros contemporâneos não tinham chegado ao poder e a mentira instalar-se em «toda a parte».


alc

quinta-feira, maio 22, 2025

«Enclave», Maria Lis

 

Língua Morta. Outubro de 2024. Fotografias de Ana Filipa Correia
Sendo o prometido devido, eis a ficha de «Enclave» de Maria Lis, poesia inquieta, não classificável (e por que o haveria de ser?), incomodada, mas paradoxalmente suave.

As crianças não são brandas, nem doces. Por vezes, são cruéis tal como nos diz o lugar-comum e o pobre do Golding. Maria Lis parece querer protegê-las dos seus diversos «encarregados» porque há sempre um encarregado, um prefeito que vela por nós, que nos limita os desejos, que nos ordena as regras, um director que domina o sonho infantil: «As palavras difíceis precisam de um encarregado» (pág.9). 

A proposta poética é, também ela, a da invisibilidade, uma constante em «Enclave»: «A invisibilidade começa por ser um poder precioso» (pág.17). Mesmo que algumas crianças tapem os seus olhos quando de lhes pede para se esconder. O não ver, o não querer ver, o não tolerar estar aqui. Ou fugir nos tejadilhos dos comboios em linha recta, sem destino, ou numa eterna planície desértica sem fim:

«A criança que não manda
gira o corpo ao redor de si mesmo
e vê os comboios cumprirem a rota
que o dono decidiu.»
(pág.36)

No tejadilho de um comboio em andamento «um tejadilho passa a ser um lugar / onde a lei não vinga» sentimos o vento na cara e nos cabelos, no corpo aberto em equilíbrio, com os Apaches e Geronimo acompanhando-nos em ritos estranhos e em cavalos alados. Seja o que for este sonho constante de fugir até ao momento do embate, um dos momentos mais empolgantes dos versos de Maria Lis neste «Enclave»: «(...) estamos sempre desprevenidos / no momento do embate.» (pág.42) Perceberemos melhor se tivermos o livro à mão e o entendermos como um todo, juntando, inclusive poemas soltos. Arrisco:

«Não nos queremos ter de pé
porque o corpo cede
e todos os planos para a revolução
foram ficando para trás
    mesmo aqueles que eram ponto a ponto
    escandidos em etapas claras
    sustentados pela evidência
    de ser para todos»
(pág.41)

«Da ideia de um todos
tantos foram sendo deixados

que risco da agenda
as alíneas do pacto de deus de Abraão
e do dicionário
a entrada que descreve os eleitos
e de todos os tomos d'O Capital
risco a palavra proletariado.

Não existe fatalidade para as leis económicas
nem um devir
nem quem se encarregue
nem advento
nem dialéctica interna do capitalismo
nem proporcionalidade
nem maturação da classe explorada
estaremos sempre desprevenidos
no memento do embate.»
(pág.42)

«Estaremos sempre desprevenidos no momento do embate», mesmo quando estivemos prestes a conseguir sair do onírico das utopias e continuar a deslocar-nos para o abafado e sufocante concreto.

E este devir selvagem das crianças e dos revolucionários apodera-se, numa metáfora extraordinária, de Geronimo numa fotografia de 1886, cansados de uma fuga constante, encostados aos carris da Southern Pacific, no Texas:

«(...) A última rendição de Geronimo
dá-se no mesmo ano, não sem que o governador de Sonora
se tenha antes espantado pelos 500 ou 600 civis mortos
                                                                    ou pilhados
por 16 dos seus guerrilheiros, em dois ou três meses.»
(pág.49)

Todas as possibilidades se abrem, portanto, mesmo contando com a exaustão mortal de Geronimo e o abandono dos seus. Ou, então, a possibilidade, a dúvida, de 

«(...) como durante a construção da muralha da China: 
sem dúvida devem existir brechas
que não foram absolutamente cobertas.»
(pág.89)

Torna-se logo evidente que nos poemas seguintes a solução preconizada face à muralha assente na reinvenção moderna do trabalho escravo é «... fazê-la cair de vez.» Tal como os muros do México que os sucessivos presidentes americanos ergueram em milhares de quilómetros, tal como as crianças indostânicas que entrelaçam os fios das nossas camisolas. De qualquer modo, este «Enclave» tenta sair da redoma imposta das nações, das fronteiras, dos papéis, como escreve Maria Lis. É um enclave em expansão, movimento do universo que tem um «destino» para amanhã se, entretanto, os adultos não perderem «a sua incapacidade de magia» de que as crianças são portadoras.

Cita Benjamin, certeira. Do seu suicídio, nos Pirenéus, com uma overdose de morfina, enquanto aguardava a deportação com outros judeus junta os seus poemas a uma frase póstuma:

«Num dos seus escritos
publicados postumamente
define o capitalismo
enquanto um culto 'sem sonho nem piedade'
religião 'da ostentação de toda a pompa sacral
e do empenho extremo do adorador'
onde os 'dias de trabalho e de culto'
indistintos
partilham nave e altar.

Então um mundo onde a culpa
se sobrepõe à esperança, à redenção
e o Éden se apresenta como uma grande loja
onde a brisa de um ar condicionado
de tão previsível
não causa arrepio à pele
(...)»
(pág.131)

Depois de lembrar Fra Angelico, é impossível não pensarmos no anjo do desespero de Heiner Müller e do anjo amedrontado de Klee ao ver o mundo destruído: 

«Sabem que não há anjos a evocar / ninguém, nem homens, nem animais / que desçam àquela terra / para algum alívio / e que o corpo iluminado / tem necessariamente / sombras do lado oposto a esse / onde a luz cai.» 

Já não há anjos, nem no desespero do mundo. É possível que já tenham abandonado o tal Éden e sejam tão mortais como nós; mas descer em qual terra? Em que fronteira pedir-lhe-ão a identificação? Só explodindo o enclave. Seja.

alc

segunda-feira, maio 19, 2025

Solução na Dissolução?

A formação de um partido da esquerda radical é tão arrebatador como a sua própria dissolução. Principalmente, quando este deixou de o ser. A construção do novo é a única hipótese legítima. O maior problema dessa esquerda é que fez, como Fausto, um pacto com Keynes que a amoleceu, tirou-lhe as verdadeiras perspectivas de mudança para um mundo novo, diferente, que valesse a pena ser vivido em comum.

alc

sexta-feira, maio 16, 2025

«Turbulenta Forma», Maria Lis

 

Língua Morta, Novembro de 2023, ilustrações da autora
Do que conheço de Maria Lis são os dois livros que tenho comigo e que a Língua Morta editou. Este, «Turbulenta Forma», de 2023 e o mais recente «Enclave» da mesma editora. Prepara-se outro, «Hortus Conclusus», segundo o Ípsilon de 31 de Janeiro deste ano, a quem Maria Lis deu uma entrevista, fazendo notar que se sente desconfortável quer com este tipo de exposição, quer com os festivais literários. Diz o óbvio: os livros que edita, é ela. Tão só.

Estava para escrever sobre os dois já publicados, nesta pequena ficha. Contudo, foi-me impossível fazê-lo porque este livro causou-me uma viva impressão. «Enclave» ficará, pois, para uma próxima oportunidade que vai ser muito em breve, porque não os larguei. Estão na mochila.

O livro é composto sobre papel quadriculado com palavras em colagens e ilustrações da própria Maria Lis. Antes que me debruce sobre um outro poema que vos quero expôr, o que é sempre subjectivo, como sabeis, retiro dois excertos que me acompanham desde sempre e que me obrigam muitas vezes a consultar. 

A experiência da colagem e o conceito de «détournement», traduzido por Júlio Henriques por «desvio» e que a Internacional Situacionista deu a conhecer como um dos símbolos mais importante do movimento e que a veio recuperar artisticamente não sem antes citar o movimento Dada, a anterior Internacional Letrista e o Surrealismo, este último alvo de bastantes críticas por parte da Internacional. Diz a IS, logo no seu número inaugural, em 1958, que a definição situacionista de «desvio» é esta:

«Emprega-se como abreviação da seguinte fórmula: desvio de elementos estéticos pré-fabricados. Integração de produções artísticas actuais ou antigas numa construção superior (...)» (Internacional Situacionista - Antologia» Antígona, 1997). A poesia de Maria Lis, não seguirá esta linha que é anacrónica, fora de um tempo em que se tentou a decomposição, ou o desvio, se quiserem, de uma sociedade que, nos anos 50 e 60, transformava tudo em mercadoria, em consumo, inclusive as relações pessoais, chamando para si e absorvendo os subordinados e os explorados. O resultado está à vista: o inferno mora ao lado porque ninguém os parou. É interessante verificar, todavia, o que Maria Lis, no Ípsilon, afirma: «O capital é muito acrobático a apoderar-se das nossas ideias, da nossa personagem. Com muita facilidade tornamo-nos caricaturas de nós próprios.» Esta lucidez sobre a sociedade que a rodeia, que nos rodeia e consome quotidianamente, é o alfa e o ómega da poesia de Maria Lis que acredita no pensamento mágico das crianças como forma de erguer utopias que podem convocar-nos ou não. E não descura os pensadores, os revolucionários, os filósofos, os que não se ajoelharam ao conformismo ou à alienação dos mercados.

Maria Lis é uma lufada de ar fresco na poesia portuguesa onde se contam pelos dedos os bons poetas, os que olham à volta e não estão de acordo. Aqueles que veem o que é subterrâneo, os que nos querem esconder ou enterrar nas suas grutas os nossos desejos. No fundo, os criadores de novas subjectividades como é esta poesia. Aqui, a colagem de letras e a composição das palavras ganham um sentido que não é só o acaso a criar. Não pode ter sido apenas assim, a técnica muito própria de Maria Lis. Mas é provável que tenha encontrado, neste maravilhoso jogo, algo de surpreendente, qual deriva que a tivesse levado a uma lógica muito singular de um poema. Um jogo em que o pensamento, a letra e a palavra se conjugam. A ideia está lá. Gravada.  

Lembrei-me igualmente de Álvaro Lapa: em 2018, encontrava-me no Porto e assisti à maior exposição sobre este autor em Serralves. Sabemos que utilizava comummente as colagens e é interessante verificar o que ele dizia sobre a pintura e a palavra quando se referia a esta técnica. As palavras são de Estrella de Diego e constam do catálogo de «No Tempo Todo» título da exposição: «[a ideia de colagem]: unir partes aparentemente díspares e até contraditórias num todo renovado e capaz de as dotar de uma nova vida em harmonia: capaz até de dar coesão aos opostos e de os integrar numa estrutura inesperada onde propõem significados diferentes. Por vezes, face ao excesso, a escassez agudiza as imagens; torna-as livres, radicais.» (pág.23)

A poesia de Maria Lis, neste «Turbulenta Forma» é claramente livre e radical. Harmonia em fogo lento.

segunda-feira, maio 12, 2025

«Tóquio Express», Seicho Matsumoto

 

Presença, 2025. Tradução do japonês de André Pinto Teixeira
Um policial japonês por dia, nem sabe o bem que lhe fazia! Dizem que Seicho Matsumoto é a Agatha Christie do Japão e este livro uma «obra-prima». O que não se compreende é que, mesmo escrito originalmente em 1958, tenha sido banido «por ter ideias ocidentais decadentes», segundo o Financial Times. Nós exportamos decadência aos molhos, está visto, os japoneses suicidam-se aos pares nos chamados «suicídios de amantes» tema central desta obra. O autor não nos engana sobre este fenómeno muito nipónico: 

«A ideia de que um homem e uma mulher encontrados nos braços um do outro devam ser considerados amantes suicidas quase dá vontade de rir. No entanto, desde tempos imemoriais que milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado, sem que ninguém suspeitasse de qualquer prática criminosa. Quando a morte é vista como um suicídio de amantes, a investigação criminal do incidente nunca é tão exaustiva como em casos de homicídio. Mal há uma investigação digna de tal nome.» (pág.181) Chamo-vos a atenção para as expressões «desde tempos imemoriais» e de «Milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado [de suicídio].» Como o caso interage com uma grande corrupção num ministério japonês ficamos, igualmente, a saber que quando são apanhados nessas teias os funcionários também se suicidam, atirando-se pela janela fora de um qualquer arranha-céus. Não saberemos, portanto, quem ficará para contar a história, mas Matsumoto não é muito original: os corruptos de cima safam-se e até melhoram o seu estatuto político em cargos de maior prestígio em remodelações governamentais para esconder esses tais casos e o mexilhão suicida-se, embora neste caso houvesse mesmo assassinato, visto que estamos num policial muito cerebral, para rimar. Estamos, pois, no final dos anos 50, cujos mistérios ainda são revelados pela intuição e dedução. Aqui não há tiros, nem câmaras de vigilância, drones, ou localizadores gps em telemóveis. Também não há escutas ou satélites. 

Contudo, há imensos horários de comboios por todo o Japão, visto que os assassinos se fazem mover por este transporte em horários cruzados e estudados ao pormenor para construírem um forte álibi. Quando se dá o suicídio, aliás, assassinato, os perpetradores têm de estar no outro lado do Japão. Fácil. No entanto, os polícias descobrem tudo no final, e nós muito antes, visto que a Editora, por excesso de zelo, nos dá a pista. Se até às páginas 150 (do total de 191!) ficamos a saber que se movem em diferentes comboios e num ferry, obrigando-nos a estar com enorme atenção à lógica das viagens, a Editora, não se sabe porquê faz este aviso: «Nota da obra original: os horários dos comboios e aviões referidos têm como base o ano de 1957»! Ora, ainda não se tinha falado em aviões na trama da história do crime. Faltando ainda 40 páginas para o fim percebemos que o assassino apanhou um avião da gloriosa Japan Airlines!! Certíssimo. Obrigado, Presença! 

alc

quinta-feira, maio 08, 2025

«Kairos», Jenny Erpenbeck

 

Relógio D'Água, Dezembro de 2024. Tradução de António Sousa Ribeiro
Ainda não entendi a razão pela qual uma boa escritora terá de ser «uma aposta segura para um futuro Prémio Nobel», isto segundo o respeitável «The Guardian» seguido da não menos respeitável editora que o cita na contracapa. É que existem exemplos tramados de nobelizáveis, digamos assim.

Jenny Erpenbeck é, sem dúvida, uma escritora singular, que nos remete para vivências que têm em comum com uma plêiade de obras que vieram do antigo leste europeu, neste caso da ex-RDA, onde viveu a sua juventude até à queda do Muro. Não sendo uma Herta Müller, é muito consistente e não cai em lugares-comuns que nós, nas chamadas democracias ocidentais, estaremos à espera. As descrições, por vezes longas e pormenorizadas, da sua vida que partilha com um apparatchick da cultura (não sem que tenha passado uns meses na Juventude Hitleriana, durante o final da guerra), trinta e quatro anos mais velho que ela, e, por ele, conhece as obras de Brecht, de Heiner Müller ou Berghaus. A personagem Katharina estuda cenografia e projecta palcos para ópera, para o teatro e para concertos musicais, nomeadamente no Conservatório de Eisler. É interessante relacionar a sua actividade profissional com a construção e manutenção do regime alemão do leste, onde é descrita a encenação total de uma sociedade que se encontrava exausta. Katharina distancia-se dessa política, não lhe interessa sequer analisá-la, mas não é uma sonâmbula. Está viva, claudica várias vezes na sua relação, traia-a, mas está sob a sua completa alçada. Não consegue sair dela e é essa tensão que atravessa todo o «Kairos» que, como sabemos, é definido como o tempo oportuno, bem diferente do cronológico. Por fim afasta-se.

Metáfora interessante é a vida de Hans, de quem Katharina depende em todos os planos da vida. Ela tem 20 e repete incessantemente que o ama. No entanto, esse amor é tão obsessivo quanto é exigido pelo Estado: toda a sociedade, as instituições, os empregos, a cultura, o dinheiro, os apartamentos, dão o que lhes é dado em obediência. É nesse sentido que há uma relação sado-masoquista entre Hans e Katharina. «O exame exaustivo das ruínas» é o que faz esta personagem nas suas viagens quer, inclusive, ao ocidente, quer à Alemanha Federal, a Colónia, quer à parte ocidental de Berlim ou aos países Bálticos. A comparação é inevitável com a RFA, principalmente após a queda do Muro, mas não do modo que esperaríamos. Descreve-nos, antes, os comunicados da oposição a Honnecker, que pretendiam aprofundar o socialismo e negava o capitalismo, enquanto a Stasi proibia os termos «glasnost» ou «perestroika». Depois de se sentir atónita pelos cidadãos da RDA não terem direito a manifestar-se sobre a Constituição federal que lhes foi imposta, após as ondas de desemprego, da destruição de um estado que lhes vendia o pão a 7 pfeniggs enquanto um casaco custava 700 marcos, uma inflação descontrolada, a fome a instalar-se e o sentimento de vergonha, quando o Muro foi aberto e a RFA oferecia 100 marcos a cada visitante oriental, por um só dia, para se comprar qualquer coisa! 

«(...) O despertar que pouco antes estava ainda em contradição com a ordem existente no Leste não tarda a tornar-se em contradição com a ordem do Ocidente que aí vem.
Pessoas que, no Inverno e no início da Primavera, viveram o êxtase da emancipação têm agora, em vez de forjar projectos inéditos, de estudar os diários do governo da Alemanha Ocidental.
Deveriam, em vez de discutir quem há-de agora dirigir este ou aquele departamento, esta ou aquela brigada, apurar o que é uma SARL ou como é o direito das fundações oeste-alemão. (...)
Aprenderam na escola o que significa a propriedade privada dos meios de produção, o que significa uma sociedade funcionar segundo os princípios da economia de mercado, mas nunca relacionaram isso consigo mesmos. Para que as instituições e, assim, os seus postos de trabalho sobrevivessem ao Outono, teriam, elas, as pessoas correspondentes, de ter um passado diferente do que têm, teriam de ser diferentes do que são, teriam de passar a ser o que não são.
Tudo isso que deveriam fazer, elas não sabem, não querem, não está em seu poder.» (pág.290)

«(...) Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais. Será que, porventura, também ela não tardará a ser apenas clientela?» (pág.288)

Entrar no mundo de Katharina é descobrir uma outra dimensão. Não geográfica, nem só política, nem apenas social. É estarmos com ela e tentar compreender as suas contradições, que provavelmente serão igualmente as nossas e é o que faz este livro ser interessante, porque somos obrigados a um exercício de desconstrução/construção psicológica enquanto a História de assenhora do seu destino, sendo ela um peão que resiste em sê-lo. Não sabemos se ganha este jogo.

alc