sábado, julho 19, 2025

«Criador de Estrelas», Olaf Stapledon

 

Editora VS. 2024. Tradução de Carina Correia. Prefácio de Tiago Pires Marques

Na contracapa deste livro Jorge Luís Borges e Arthur C. Clarke avisam que se trata de «uma novela prodigiosa», escreveu o primeiro, e de «a mais poderosa obra de imaginação alguma vez escrita», afirmou o segundo. Assino por baixo, evidentemente. No entanto, devo dizer que tanta imaginação levou-me a prescrutar a net sobre a biografia deste homem procurando, em vão, algum fio condutor que me levasse à constatação, um pouco voyeurista, que terá abusado de drogas, mescal ou álcool em abundância. Nada disso. Olaf Stapledon, inglês bem-comportado, escreveu esta obra em 1937 e foi, pelo que observei, um tipo de gentleman admirador das ideias marxistas, adepto do materialismo histórico, não sem que transpareça nas suas páginas um certo incómodo pelas possibilidades de aparecimento de totalitarismos através das utopias bem intencionadas como foi a da construção da URSS. Se nos ativermos às datas da publicação de «Criador de Estrelas» observamos que foram escritas logo após os processo de Moscovo e, sem o referir explicitamente, ele dá-nos a percepção dessa incomodidade que atravessou toda a intelectualidade da esquerda inglesa dos anos 30. 

Essa incomodidade não se vislumbra no claro darwinismo de que foi absolutamente adepto. Ou pelo pacifismo que abraçou desde a objecção de consciência que proclamou na guerra de 1914/18 tendo servido o exército inglês no salvamento e tratamento dos feridos da frente. Em 1940, contudo, já não o encontramos envolto nos movimentos pacifistas e atacou claramente o nazismo e o fascismo. Morre em 1950 e ficou com o apodo de «pai da ficção científica» moderna e contemporânea. Este conhecimento da devastação que traz a guerra, por quem a viveu de perto, transparece em cada página.

Sobre o livro em si, será difícil descrever a sucessão de acontecimentos e viagens quer interplanetárias, ou mesmo intergalácticas. Tudo é possível em «Criador de Estrelas»: a possibilidade de viajar a uma velocidade superior à da luz, quer através do processo mental, quer de outras, muitas, viagens do próprio planeta com um sol artificial, irradiando a energia necessária para encontrar outros mundos, também eles inteligentes, ou puramente sencientes que ia encontrando, juntamente com um outro habitante de Outra Terra. A sua «imaginação prodigiosa» levou-o a prever aterradoras alterações climáticas na Terra (é evidente que é tudo imaginado!!) e a solução para o que observamos com a deslocação gradual do eixo da terra: nada como uns foguetões atómicos que seriam colocados nos pólos e, se ligados continuamente, colocariam o nosso planeta nos eixos, ou melhor, no eixo inicial. Sinceramente, adoptei este método como meu, se disso tivesse hipótese! Já com a eugenia, desgraçadamente em voga à época, Olaf Stapledon via-a como tendo uma marca positiva, como melhoramento da inteligência humana que levaria as sociedades ao entendimento e paz globais. Creio que sobre a «inteligência humana» e o seu desenvolvimento posterior a 1950, estamos conversados. Sobre a paz, idem. Sobre o fim do racismo, aspas, aspas!

Fiquei com um travo amargo após a leitura de «Criador de Estrelas». Em primeiro lugar, a própria imaginação do autor limita-me a esmo: não consigo idealizar um planeta inteligente submerso pelas águas de um oceano em que os seus habitantes tinham uma vela na crosta das suas costas, que se locomoviam com o vento e que comunicavam entre si através de sinais acústicos. Como se poderia ler Heidegger com estes sinais tão básicos? Olaf Stapledon não explica esse verdadeiro impedimento social. Vida inteligente nas plantas, sim, conheço muito bem e algumas delas existem na política portuguesa. São uma espécie em absoluto desenvolvimento até pelas lianas que se reproduzem em movimentos sexuais através do pólen e do perfume que lançam. Por que não? De resto e em segundo lugar, cada página, uma novidade, até ao cansaço final que nos tolhe o pensamento diminuído já pela impossibilidade manifesta em acompanhar o autor. Finalmente, a leitura era-me seguida de imagens contínuas de seres extraordinários, mas sómente nas gravuras e na banda desenhada dos anos 30 e 40 do século XX e que eram a maravilha dos miúdos dos anos 60 nas páginas de domingo de «O Primeiro de Janeiro», d'«O Século» e do «Diário de Notícias», com mulheres poderosas de revólver à cintura fina e de guerreiros «armários» de collants vestidos. Ambos os sexos em procura constante de glória eterna em planetas desconhecidos. Não se diga que não os amámos.

alc

Anne Marie Schwarzenbach. Estudos 5


Anne Marie Schwarzenbach. Estudos 5
com a Galeria/Atelier Ícone

segunda-feira, julho 14, 2025

"Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento", Timothée Parrique"

 

Livros Zigurate, tradução de José Mário Silva, Maio de 2025. O Público de 7 de Julho de 2025 publicou uma entrevista com Timothée Parrique.

A leitura deste livro fez-me recordar uma célebre frase de um ex-jogador de futebol que analisou a sua época ganhadora com «...estivemos à beira do abismo, mas demos um passo em frente!». Não estou a ironizar e esta frase vai direitinha para aqueles que pensam que o capitalismo pode renovar-se por si só, tornando-se «verde», «solidário», «amigo da natureza», «socialmente justo», «democrático», etc. Não, não vai, porque a o seu adn é o lucro acumulado e o crescimento contínuo até ao infinito, se possível fôra e existindo, ou não, um abismo à sua frente. Pouco lhes interessa, aos mais ricos do mundo inteiro (os tais 1%), que o planeta se exaure, que as alterações climáticas façam soçobrar povoações ou países inteiros, que a percentagem de pobres no mundo inteiro tenha aumentado exponencialmente, ou que o Sul ande afogado em dívidas impagáveis aos países do Norte desenvolvido, extractivista, imperialista, neocolonizador, que lhes impõe as emissões de carbono em deslocalizações de empresas tóxicas. Pouco lhes interessa, igualmente, que exista uma panóplia imensa de «trabalhos de merda» (David Graeber), inúteis e tóxicos, que não sem alguma lógica capitalista e especulativa, são os mais bem pagos.

«Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento», de Timothée Parrique, não é somente, um manifesto ecologista. Certamente ecossocialista, certamente anticapitalista, mas eivado de um optimismo que até nos pode irritar, pela apresentação tão desconcertante, como sustentadamente viável, dos pressupostos do decrescimento, movimento que tem vindo a alargar-se, cada vez mais, na opinião pública e desde os inícios dos anos 70. Podemos situá-lo num anticapitalismo, mas não deixa de ser sintomático, os ataques que lhe são arremetidos, quer pelos ecologistas, quer pela esquerda parlamentar europeia, ou que está em vias de o ser, que se recusam a apresentar aos seus eleitores propostas sólidas e congruentes de transição pelo decrescimento e reformulação dos itens do PIB, alfa e ómega do capitalismo e indicador de um crescimento enganoso.

Se o decrescimento, segundo os seus detractores, não resolveria nada, antes enterrando as pessoas na pobreza e na desregulação social, no desemprego, perguntar-nos-íamos por que razão o «crescimento» capitalista não teria já resolvido a equação da desigualdade e, pelo contrário, a tenha aumentado exponencialmente, com o aparecimento de fortunas colossais nunca antes visto, mesmo no liberalismo puro e duro do século XIX. As críticas ao decrescimento são de tal modo desproporcionadas e violentas que chego a admitir que talvez Timothée Parrique tenha razão na apresentação deste livro/manifesto. Sólido nos argumentos e dados no ponto de vista económico e social, é contudo, no plano político onde alguma hesitação se faz sentir. É evidente que o processo de decrescimento (volta-se a sublinhar o aumento de pessoas que investem no «ter menos, para ganhar mais vida») está ligado ao aumento da democracia e do movimento cooperativo e autónomo, municipal até, reconfigurando as empresas, tornando-as não lucrativas e proibindo e criminalizando, por exemplo, a obsolescência, entre perto de 380 itens que se cruzariam na proposta ecossocialista. Sintomática foi a resposta de Michel Rocard um peso-pesado do «socialismo» francês que ao ouvir, pela primeira vez, estas propostas, imaginou de imediato uma «guerra civil», como se essa realidade não existisse já e promovida pelos mais ricos e pelos estados que desmantelam os serviços públicos e descartam qualquer hipótese séria de uma economia socialmente útil. 

O decrescimento torna-se assim a única saída para uma fase de transição que espolete para uma realidade-outra que pode ser o que quisermos, desde que o capitalismo morra de vez. Exemplos de verdadeiras alternativas não faltam.

«Termino com o meu livro preferido, ''The Future is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism'' (Junho de 2022), de Matthias Schmelzer, Andrea Vetter e Aaron Vansintjan. Verdadeira enciclopédia do decrescimento, encontramos nele a integralidade da literatura (quase uma centena de conceitos) cuidadosamente organizada em tipologias: ste críticas do crescimento económico (ecológica, socio-económica, cultural, anticapitalista, feminista, anti-industrialista e internacionalista), cinco correntes de decrescimento consideradas de diferentes ângulos (as instituições, a suficiência, as economias alternativas, o feminismo, tal como o pós-capitalismo e a alter-globalização), três princípios do decrescimento (justiça ecológica; justiça social; autodeterminação e a vida boa; independência em relação aos imperativos do crescimento) e seis famílias de propostas (democratização, economia solidária, e bens comuns; segurança social, redestribuição e limites quanto à acumulação de riqueza; tecnologias conviviais e democráticas; revalorização e redestribuição do trabalho; democratização do metabolismo social; solidariedade internacional). este livro, por si só, resume perfeitamente o vasto campo de estudos em que se tornou o decrescimento.» (pág.163)

alc

quarta-feira, julho 09, 2025

"Intelectuais Portugueses e a Ideia de Esquerda num Tempo de Transição (1968-1986)",João Moreira

 

Afrontamento, 2025
Um dos mais estimulantes ensaios sobre a Esquerda e o seu passado, não tão distante assim quanto o título supõe, tendo em conta que alguns dos pressupostos e ideias das três personagens, aqui retratados na capa do livro, ainda continuam vivos, mesmo com outras linguagens e propósitos. Deve-se isto a João Moreira que, antes, já tinha prefaciado um livro de João Martins Pereira «Portugal e a União Europeia» e que aqui demos conta ( Deriva das Palavras: Resultados da pesquisa para João Martins Pereira ); este estudo debruça-se sobre o caminho teórico e ideológico percorrido por Eduardo Prado Coelho, António José Saraiva e João Martins Pereira entre 1968, início da tão fugaz como enganadora «primavera marcelista», e 1986, data da nossa entrada na União Europeia, no fundo, o corolário da normalização capitalista e democrática. 

O que torna ainda mais interessante este estudo é propormo-nos, ao mesmo tempo da sua leitura, um exercício subjetivo e individual de  colocarmo-nos (a nós que vivemos na adolescência a revolução de 1974-75) sob o olhar de um jovem investigador que observa criticamente o percurso, nem sempre óbvio ou muito linear, das esquerdas a que estes pensadores deram forma e que, de uma certa maneira, pertenciam. Resultado deste teste: nós estamos todos lá e são centenas de milhares os que sentiram politicamente o tapete fugir-lhes debaixo dos pés, os que procuraram sofregamente alternativas que muitas vezes se transformaram em fugas para a frente ou becos sem saída. A(s) Esquerda(s) ainda hoje paga a tergiversações a que foi sujeita após os anos 80 proclamarem o «there is no alternative» de Thatcher e Reagan e o liberalismo subsequente. Dá vontade de dizer que nós somos eles, mesmo que por pouco tempo ou em alguma circunstância que vivemos intensamente e que já reservamos para nós próprios em memórias fugidias.

Profusamente anotado e com transcrições de cartas e artigos de opinião de António José Saraiva, Eduardo Prado Coelho e João Martins Pereira, João Moreira consegue, de um modo notável e fruto de um trabalho meticuloso, dar-nos uma perspectiva clara de percursos extremamente difíceis de distinguir no campo da esquerda e que só revelados com citações e influências, muitas das vezes exteriores, como, aliás, é uma constante do intelectual português. A conjuntura sócio-política quer no mundo, quer em Portugal, também aqui não é esquecida o que esclarece, sem alguma dúvida, algumas das posições mais problemáticas assumidas por alguns dos protagonistas.

Não se pode imaginar a esquerda em Portugal sem o manto protetor da PCP. Em 1968, ainda pontificava a sua influência nos intelectuais portugueses, não sem que o maoísmo, o trotskismo, a onda libertária do Maio 68, ou a luta armada, lhe tivesse corroído os seus alicerces ideológicos. Quer António José Saraiva, quer Eduardo Prado Coelho foram militantes do PCP, embora em períodos diferentes, até pela diferença de idades entre um e outro. O primeiro foi, talvez, o que deu a maior volta na sua vida política, principiando na ortodoxia pura para um apoio tardio à política autoritária de Salazar. Pelo meio, atravessou várias fases, como João Moreira demonstra principalmente nas cartas ao seu amigo e militante comunista Óscar Lopes e na revista Raiz e Utopia, só para utilizar dois exemplos dos muitos que o livro nos dá. Eduardo Prado Coelho, inicia o seu militantismo no PCP já após a Revolução e mostra-se sempre anti-estalinista e heterodoxo, o que não deixa de criar alguns escolhos em camaradas de partido e mesmo no sector intelectual. Em 1976 já não se encontra militante do PCP, enveredando pela construção de uma alternativa entre o PC e o PS e levando-o ao MES, à FSP, ao GIS, à UEDS e, talvez já cansado, ao eanismo e, finalmente, ao PS. Não deixa de ser importante verificar que os quatro primeiros partidos referidos tiveram a coragem de se autodissolver pelas impossibilidades práticas de continuarem o seu caminho. No meio desta viagem, o debate e as ideias que eram uma constante dentro das esquerdas, foram apresentadas de uma maneira primorosa pelo trabalho de João Moreira. Verificamos, nesse estudo, o verdadeiro vigor intelectual das esquerdas e, paradoxalmente, a sua própria fraqueza organizativa. E é aqui que entra João Martins Pereira, o único que embora não pertencesse ao PCP e nunca tivesse sido seu militante, foi secretário de estado da economia do IV Governo Provisório, tendo-se demitido alguns meses após a experiência. É também ele que apresenta uma lucidez e uma crítica que o coloca entre os maiores intelectuais portugueses desde os seus escritos em «O Tempo e o Modo», passando pela redacção da «Gazeta da Semana» e «Gazeta do Mês» até à publicação do arrasador «No Reino dos Falsos Avestruzes» em 1986, data-limite deste ensaio. Nunca deixou de ser marxista crítico, a forma mais óbvia e honesta de ser «marxista». 

É notável igualmente, observar criticamente o percurso paralelo que muitos militantes da esquerda (hoje muito conhecidos nos media e na política) fizeram diretamente para a direita e para o poder, em pouquíssimo tempo e com os mesmos argumentos da chamada «nova direita» francesa que coincidia com as teses liberais da «nova esquerda» da revista «Risco»: «...a esquerda morreu e tem consigo o germe do totalitarismo». Talvez seja mesmo uma notícia de morte um pouco exagerada.

Não se pense, contudo, que estamos perante datas estritamente limitadas. João Moreira consegue dar-nos uma visão geral do mundo cultural e intelectual envolvente a que Portugal esteve criminosamente alheio durante o salazarismo e o «volte face» do marcelismo optando pela continuação da guerra colonial e a chantagem da extrema-direita, saudosa dos velhos tempos da repressão e terror do salazarismo. Mais uma vez, no campo das ideias, Portugal chegou atrasado, tíbio. E a oposição democrática, a Esquerda e, mais tarde, o período da Revolução de 74/75 vai refletir as divisões, as incompreensões, as tragédias que as esquerdas conheceram até hoje. Talvez conhecer estes percursos nos deem mais uma ferramenta de análise para criar todas as utopias, mesmo que alguns de nós as tenham abandonado, porque a aceitação do real não será muito melhor opção. É isso que faz igualmente a atração pelas coisas novas, pelas tais «novas subjetividades» igualmente referidas neste livro notável de João Moreira.

alc

Heiner Müller. Estudos 5

 

Heiner Müller. Estudos 5. Tinta da china, acrílico e colagem. 
Com a Galeria / Atelier Ícone 

quinta-feira, julho 03, 2025

Camille Claudel. Uma nota sobre biografias


Camille Claudel (1864-1943)
Uma fotografia da jovem Camille Claudel faz-me introduzir uma tema que me é caro: o das biografias. Camille Claudel era uma mulher bonita e, além disso, uma escultora que teve como mestre e professor Auguste Rodin que exerceu sobre ela um poder pessoal e profissional bem comprovado pelos factos. Hoje, chamar-se-ia extrativismo intelectual e artístico a forma como Rodin tratou a sua jovem aluna. Não mostrarei aqui a fotografia, existente na nuvem digital, do estado em que se encontrava após 30 anos (!!) presa num hospício francês e depois de várias missivas a rogar pela sua liberdade. Paul Claudel, seu irmão e poeta católico, não sai bem nesta história. Aliás, sai mesmo muito mal e o filme «A Paixão de Camille Claudel», com Isabelle Adjani e Gérard Depardieu não é suave para com aquelas personagens masculinas. 

É, contudo, uma fuga à regra a que eu próprio me impus. Vi este filme, é certo, mais por curiosidade ocasional que crescia à medida que as imagens e as situações se sucediam, do que saber, através dele, a vida de Camille Claudel de que conhecia, em catálogo, já algumas obras e parte da sua vida coartada inutilmente pelos familiares e por Rodin que invejava o seu fulgor escultórico. 

Não leio biografias por sistema e menos ainda as chamas «cartas de amor» de artistas ou poetas que me foram importantes e, pelo que experimentei, nas poucas que li, souberam-me sempre a pouco, ou achei demasiado tendenciosas ou mesmo inverosímeis. Daí, ter lido com algum tédio misturado as cartas de Fernando Pessoa à Ofélia e nem sequer tive interesse, mínimo que fosse, em ler as cartas de amor entre Paul Celan e Ingeborg Bachmann, entre António José Forte e Amélia Bento, ou as de Proust, de Annemarie Schwarzenbach, de Virgina Woolf, de Oscar Wilde ou as de Nietzsche. 

Agora, surgem-me duas biografias de autores portugueses que requerem algum fôlego para as aceitar e que, por isso, nunca lerei, porque conheci as suas obras, os seus escritos, desde os anos 70. São elas as de Herberto Helder e Luiz Pacheco. Extratos que li, por aqui e ali nos media, dizem-me que será melhor nem iniciar a sua leitura. Não me interessam. Pouco acrescentam e, quando o fazem, é irrelevante para uma ideia, mesmo que irreal, do que deles li. Já antes, tomei conhecimento da existência de duas biografias de Fernando Pessoa me passaram completamente ao lado e assim vai continuar. Mas abro exceções evidentes: ler uma biografia de Camões por Aquilino Ribeiro é outra coisa, tal como as de autores que identificam a época e as geografias em que viveram e que não foi a minha. Aí, concedo o conhecimento dos escritos e tenho revisitado autores comparando a sua vida com o que escreveram sobre o mundo, o mundo dos próprios que, por motivos claros, nos quiseram transmitir, transformando aquilo que seriam meras autobiografias em peças literárias imprescindíveis.

alc

segunda-feira, junho 30, 2025

"Um Quarto só Seu", Virginia Woolf

Penguin Clássicos, 2025. Tradução de Isabel Castro Silva 
Uma das razões, talvez a mais importante mas não única, que me leva a ler Virginia Woolf é a sua escrita. Embora este livro tenha sido a compilação e adaptação de uma conferência de dois dias, em Londres, no ano de 1928, a fluidez do discurso é notável, tal como a inteligência viva dos argumentos que Virginia Woolf utiliza para desmontar uma sociedade patriarcal e catedrática, não completamente diferente dos dias de hoje. O que nos deve preocupar é a actualidade do que ali se afirma e da misoginia que entretanto voltou todas as suas armas, antes escondidas, para um chamado «anti-wokismo» (não gosto da expressão ''woke'') cuja pretensa crítica mais não é do que a tentativa de travar qualquer superação das liberdades conquistadas, séculos fora. Ela dá exemplos dramáticos dos ataques de que eram objecto não só as mulheres, mas igualmente tudo o que não fosse branco, homem e cristão. A poesia e a literatura, tal como nos dias de hoje, também sentiram estas ondas de ódio. E tomar conhecimento das propostas apresentadas pelos seus defensores não deixa de ser uma viagem ao pior dos pesadelos.

«Um Quarto só Seu» não é somente uma vindicação feminista. É muito mais do que isso: é uma lição sobre a seriedade que devemos à literatura. É uma aula extraordinária aos leitores (escrevo isto quando se divulga, publicamente, que 53% dos portugueses não leram um só livro em 2024!!) e uma resenha sobre a necessidade de circunspecção e recolhimento para quem escreve, coisa que para as mulheres era, tão-só, impossível de satisfazer, isto pelo menos até ao século XIX. O facto de Virginia Woolf o fazer, uma coisa aparentemente simples como escrever, era porque uma sua tia, ao cair de um cavalo e morrendo em virtude (!) da queda, lhe deixou 500 libras por mês até ao fim dos seus dias. E não era casada, nem tinha filhos, tendo o privilégio de um quarto sossegado para a escrita e não a sala de visitas ou de estar de uma casa. Percebemos, no final desta leitura extraordinária, que não é de somenos. E ela dá exemplos concretos em frases interrompidas em Charlotte Brontë, em «Jane Eyre», com a desenvoltura literária, ainda que escondida dos seus amigos e familiares, de uma Jane Austen. Já para não falar da proibição de mulheres entrarem em bibliotecas públicas para pesquisarem o que bem entendessem, sem serem acompanhadas por mestres ou professores, como aconteceu a Woolf em Oxbridge [cidade universitária imaginada, mas seria a junção de Oxford com Cambridge].

«Voltei pois à minha pousada e, enquanto percorria as ruas escuras, ponderava isto e aquilo, como se costuma fazer no final de uma jornada de trabalho. Perguntei-me por que razão Mrs. Seton não tinha dinheiro para nos deixar; e no efeito que a pobreza tem no espírito; e pensei nos estranhos velhos cavalheiros que vira nessa manhã com abafos de peles pelos ombros; e recordei como, a um assobio nosso, eles vinham a correr; e pensei no órgão a estrondear na capela e nas portas fechadas da biblioteca; e pensei   como é desagradável ficar trancada do lado de fora; e pensei que é talvez pior ficar trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro e no efeito de tradição e da falta de tradição no espírito de uma escritora, pensei por fim que era tempo de arregaçar a pele engelhada do dia, com os seus argumentos e as suas impressões e a sua cólera e o seu riso, e atirá-la para a sebe. Parecia-me estar sozinha em companhia inescrutável. Todos os seres humanos estavam deitados a dormir - de bruços, horizontais, mudos. Nas ruas de Oxbridge ninguém parecia mexer-se. mesmo a porta do hotel abriu de rompante ao toque de uma mão invisível - era tão tarde que não havia sequer um moço de recados acordado que me alumiasse o caminho até ao quarto. (pags.34/35)

«E com aquela inquietude com que se tiram e se voltam a pôr livros na prateleira sem olhar para eles, comecei a vislumbrar uma era futura de pura virilidade assertiva, uma era que as cartas de certos professores (as cartas de Sir Walter Raleigh, por exemplo) parecem prenunciar e que os governantes de Itália [de Mussolini] já puseram em prática. Pois é difícil não se ficar impressionada com a masculinidade não mitigada em Roma; e, qualquer que seja o valor da masculinidade não mitigada no Estado, podemos questionar o seu efeito sobra a arte da poesia. Em todo o caso, segundo os jornais, há uma certa ansiedade sobre a ficção em Itália. Decorreu um encontro de académicos com o objetivo de ''desenvolver o romance italiano''. ''Homens famosos pelos seus apelidos ou na alta finança ou na indústria ou nas corporações fascistas'' reuniram-se no outro dia e discutiram o assunto e enviaram um telegrama ao Duce manifestando esperança ''de que a era fascista dê luz dentro em breve uma poesia digna do seu nome''. Podemos todas juntar-nos a essa esperança piedosa, mas é de duvidar que a poesia possa sair de uma incubadora. A poesia deve ter uma mãe além de um pai. O poema fascista, receio bem, será um pequeno aborto hediondo, como aqueles que vemos em frascos de vidro no museu de uma qualquer cidade de província. esses monstros nunca vivem muito tempo, ao que se diz; nunca se viu um prodígio dessa espécie a cortar erva num campo. Duas cabeças num só corpo não duram uma vida inteira.» (pág.139)

alc

terça-feira, junho 24, 2025

«Panegírico», Guy Debord

 

Antígona, 1993. Tradução de Júlio Henriques
Um ano após esta edição da Antígona, Guy Debord suicida-se numa casa de campo de Auvergne já afastada da «sua» Paris, segundo ele, e creio que por todos nós, em ruínas amontoadas pelo lucro, pela urbanização precursora de uma alienação sem limites, pela gentrificação contemporânea que ele não veio a conhecer nesta dimensão tão brutal como ela é hoje e que é observada por todas as cidades europeias. 
De qualquer modo, Guy Debord continua irrecuperável pelos media. Este «Panegírico» é de consultar de tempos a tempos, para entender de como é feita essa impossibilidade, baseada no desprezo profundo por uma sociedade que o não soube ser, recusando a felicidade e a deriva da liberdade total. Neste momento, em que as soluções fascistas repugnantes andam de braço dado com a especulação do lucro sobre os nossos corpos, promovida pelos estados e tornando-nos mercadorias para venda e troca, ainda há quem abrace, com denodo incontido, o estado a que se chegou. Um panegírico é livre de toda a crítica ou censura como nos lembra Debord. É ele mesmo, sem quaisquer laivos de interpretação.

«Aqueles que a respeito de nada querem escrever depressa o que ninguém lerá uma só vez até ao fim, nos jornais ou nos livros, gabam com grande convicção o estilo da linguagem falada, por o acharem muito mais moderno, directo, fácil. Mas eles próprios não sabem falar. Os seus leitores tão-pouco, visto a linguagem efectivamente falada nas modernas condições de vida ter socialmente chegado a um resumo da sua representação, eleita em segundo grau pelo sufrágio mediático; somada, dará umas seis ou oito maneiras de falar, incessantemente repetidas, e menos de duas centenas de vocábulos, nestes incluindo uma maioria de neologismos; vendo-se a terça parte deste conjunto sujeita a renovação de seis em seis meses. Tudo isso favorece um certo rápido liame. Por meu lado, e pelo contrário, vou escrever sem afectação e sem canseira, como a coisa mais natural e mais fácil do mundo, a língua que aprendi e na maioria das circunstâncias sempre falei. Não sou eu que tenho de a modificar. Os Ciganos consideram com razão que só podemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira. Outra vantagem: tendo como referência o vasto corpus dos textos clássicos publicados em francês ao longo dos cinco séculos anteriores ao meu nascimento, mas sobretudo nos dois últimos, será sempre fácil traduzirem-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já for língua morta.» (pág.17/18)

«(...) Todas as revoluções penetram na história, e nem por isso a história está pejada delas; os rios das revoluções voltam aonde começaram, para de novo fluírem.» (pág.32)

«(...) Quando ''ser absolutamente moderno'' se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que o possam suspeitar de passadista.» (pág.75)

Infelizmente, o aumento de escravos honestos nas sociedades modernas é directamente proporcional ao número das tiranias que surgem por todo o mundo. Sobre a escravidão moderna citarei Agamben que sobre Debord afirmou: «Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa das misérias e escravidões de uma sociedade - a do espectáculo, em que vivemos - que nos nossos dias estendeu o seu domínio a todo o planeta. Como tais, os seus livros não precisam de ser esclarecidos nem elogiados, e ainda menos necessitam de um prefácio.» (Da badana do livro).

alc

domingo, junho 22, 2025

«Não São Para Valsas Todas as Noites», José Miguel Gervásio

 

Língua Morta, Outubro de 2022
«(...) Ríamos para afastar o mal que o destino podia fazer às pessoas felizes. Felizes como nós, filhos da revolução e, sem sabermos, de nós mesmos. Por vezes, debaixo do sol tórrido, sem mais nada para fazer, observávamos o tempo a chegar. Bastava-nos isso e a hora de ir comprar gelados ao minimercado Europa que ficava do outro lado da rua. O pequeno entreposto comercial era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia do interior do país que pertencia a um tempo não muito distante. Pois ali vivia o homem concreto no seu verdadeiro habitat. as tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista do bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, de modo a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro pudesse dar. Os raciocínios de vinha-d'alhos de uma filistina fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo judaico-cristão. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta? De que vale a máquina que libertou o homem da escravatura da labuta se o atirou para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas? A mercadoria confunde-se com o trabalhador, tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro que vem a ser? Palavras supostamente sábias, ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do minimercado Europa. O pessoal mais novo à volta dele, a chupar Olás, a ouvi-lo. (...)» (págs.54,55)

E o romance de José Miguel Gervásio continua nesta toada. No final, todos nós achamo-nos como os putos a ouvir o comentador Quirino à porta de minimercados em fervorosos raciocínios em vinha-d'alhos. É o que mais há por aqui, ainda com o nome faiscante de Europa à nossa porta, entretanto escancarada para todas as soluções mirabolantes que a sociedade nos impingiu de grosso modo. Para consumir, de preferência, frescas. Como os gelados que chupamos em frente a televisores. 
Uma leitura a não perder.

alc

sábado, junho 14, 2025

«A Estação da Sombra», Léonora Miano

 

Antígona, Outubro de 2015. Tradução de Miguel Serras Pereira
Não é um livro qualquer, este «A Estação da Sombra», da camaronesa Léonora Miano. A sua obra baseia-se na tradição oral africana, talvez situada no século XVI ou XVII, que ainda sobrevive sobre o terror da escravatura a iniciar então a sua acumulação primitiva de lucros baseada na extracção violenta de homens, mulheres e crianças. Essa tradição oral foi estudada não só pela memória existente através de gerações, e, felizmente, bem viva nas sociedades africanas ainda hoje, mas também pela acção da Société Africaine de Culture e da Unesco conduzida principalmente no Benim, no Gana e nos Camarões. Mas poder-se-ia alargar a todas as zonas onde o comércio escravo prosperou. 

O romance leva-nos a uma realidade esmagadora: o sofrimento indescritível das pessoas apanhadas nas teias (literalmente, em redes) da escravatura e do aprisionamento, e igualmente na desconstrução das estruturas políticas africanas baseadas quer em monarquias hierárquicas com as Bwele que aumentaram o seu autoritarismo e discricionaridade desde que iniciaram os contactos com os brancos que exigiam um comércio de captura de inimigos que até aí não o foram nunca, como os Mulongo onde, embora existindo um chefe, o conselho de anciãos era o que detinha efectivamente o poder. Na destruição completa deste último povo centra-se o romance de Léonora Miano em páginas de grande beleza mística que se intercala com um horror sentido por quem não compreende o que se desenrola à frente dos seus olhos, destruindo a unidade familiar, social e económica de comunidades que se julgavam seguras e em paz. Esse horror que vinha em grandes velas brancas sopradas pelos ventos de pondo (norte) num oceano indescritível e terrífico, fim do seu mundo conhecido.

No entanto, a esperança residia, talvez metaforicamente, num povo que se reconstituiu nos confins de um grande rio, cercado por pântanos inacessíveis e onde se encontravam todos os povos fugidos da escravatura e da captura humanas para serem vendidos em hasta pública em países longínquos onde se dizia habitarem homens brancos sem alma, visto que só viam a riqueza no ouro, na violência e no comércio: era a povoação recém-formada dos Bebayedi. Povos em fuga, sem história, mas resistente nas suas múltiplas tradições, solidário, compreensivo para com as múltiplas línguas e falas que se fixa, nas margens de um grande rio que lhe traz a riqueza que necessita e nada mais do que isso.

«Não foi unicamente por cima da cabana daquelas cujos filhos não foram encontrados que a sombra se suspendeu por um tempo. A sombra está por cima do mundo. A sombra impele as comunidades a enfrentarem-se, a fugirem da sua terra natal. Quando tiver passado o tempo, quando as luas se tiverem sucedido às luas, quem guardará a memória destas dilacerações? Em Bebayedi, as gerações por nascer saberão que fora necessário fugir para escapar às aves de rapina. Ser-lhes-á dito o porquê destas cabanas levantadas sobre as águas. Ser-lhes-á dito: 'A desrazão apoderara-se do mundo, mas alguns recusaram-se a habitar as trevas. Vós sois a descendência dos que disseram não à sombra.'» (pág.135)

alc

domingo, junho 08, 2025

"Electra 28"



Costumo comprar a Electra de um modo intermitente mas não podia faltar a este último número, o 28, o da Primavera de 2025 (assim dito é muito mais apelativo). António Guerreiro conduz-nos pela história e perspectivas actuais e futuras do livro: o de papel e também o digital e a (im)possibilidade deste constituir uma verdadeira substituição ao velho fólio. Para quem gosta de livros e não pode viver sem eles, eis um número da revista que não pode perder.

Embora os artigos sejam muito díspares relativamente à sua qualidade, há alguns, dir-se-ia na sua grande maioria, que vale a pena ler, sublinhar, guardar e memorizar como argumentos necessários à conservação do livro tradicional, ainda assim, e até hoje, mais rápido de consultar do que o digital. Aliás, coisa que nenhum artigo do "Assunto" da Electra 28 releva é o paradoxo do livro digital copiar, no ecrã luminoso, a textura do papel, a passagem visual de uma página para a seguinte ou, até, o som de uma página a ser voltada por dedos inexistentes. Toda uma retro-tecnologia, pelos vistos! E o valor do preço dos livros digitais é tanto mais caro, quanto maior for a imitação do velho livro em papel. 

Sobre a indústria livreira actual com a série interminável de títulos que nos afogam em espaços comerciais que vendem toda a parafernália electrónica (já vi um carro eléctrico da Citroën e batedeiras para sumos à venda junto aos livros de Valter Hugo Mãe; mas, pensando bem, por que não?) é analisada com algum pormenor, principalmente nas entrevistas a John B. Tompson e a Roger Chartier. Este último afirma na entrevista, o seguinte:

"A originalidade radical do mundo electrónico foi o de estabelecer uma separação drástica entre o suporte e o discurso. O ecrã é o suporte de todos os textos que o seu utilizador convoca ou produz. Não está de modo algum ligado a um discurso particular, como acontece com os livros. Um 'livro electrónico' não é verdadeiramente um livro, uma vez que a identidade do seu discurso já não é materializada pelo objecto que o contém e transmite. No mundo da textualidade digital, os discursos já não estão inscritos em objectos que permitam reconhecê-los na sua identidade própria. O mundo digital é um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos". 

Entre mais considerações que aqui se poderiam plasmar, vale a pena ler os artigos sobre o que se entende pela novíssima "leitura acelerada" dos dias de hoje e da profusão de temas 'invasores' com que nos deparamos todos os dias e que nos leva a uma outra questão não menorizada pela revista: a da nova censura empresarial radicada nas redes sociais e do papel da Amazon na canibalização das editoras (ainda há editores que escolhem a coerência dos seus catálogos, ou são autores que, cada vez mais, pagam a sua própria edição?) e livrarias que ainda tentam ser independentes. 

A não perder igualmente: "O livro, esse objecto mágico",  artigo de António Guerreiro, "A Biblioteca de Alexandria e as bibliotecas", de Robert Darnton, "O livro numa encruzilhada" de Diogo Ramada Curto e "Pod.Cast", de Diogo Vaz Pinto. 

alc

terça-feira, junho 03, 2025

«Os Sonâmbulos», Hermann Broch

 

Relógio D'Água, 2018. Tradução de António Sousa Ribeiro
Numa entrevista datada de 1962, ao Jornal de Letras e Artes, Mário Cesariny, talvez muito mal-disposto, classifica Hermann Broch como um mau romancista, colocando-o ao lado de um Sade, de um Melville, de um Jünger, de um Proust, de um Kafka, de um Lautréamont, de um Genet e de um Jarry, entre outros. Claro que não poderia faltar um mau poeta para ser comparado a Broch: Fernando Pessoa! Não sei o que diria o autor, falecido em 1951, se se visse comparado a estes nomes, mas no caso dele não me sentiria, de modo algum, frustrado. E Cesariny é um grande poeta. 

Hermann Broch escreveu três romances de uma trilogia a que deu o título geral de «Os Sonâmbulos» constituída  por «1888 - Pasenow ou o romantismo», «1903 - Esch ou a anarquia» e «1918 - Huguenau ou a objectividade». Um período histórico que não é um acaso: situa-se entre a ascensão de Guilherme II até ao final da I Guerra.

Quando chegamos ao fim da trilogia sentimos já alguma nostalgia de não podermos continuar a analisar a verdadeira saga de personagens que povoam e se cruzam nestes três romances. Hermann Broch convive com a técnica da narrativa, juntamente com alguma poesia, considerações pessoais e pensamento disperso. É, talvez, neste último aspecto, que Hermann Broch, talvez contraditoriamente, se encontra mais débil e mais solto. É um pensador humanista, não um filósofo no sentido da criação de uma estrutura lógica de pensamento novo, mas interessante de estudar porque descreve pormenorizadamente e de uma forma magistral as personagens que pontificaram na República de Weimar. Talvez seja por isso que Hanna Arendt o prefaciou postumamente (em vida poucos o conheceram como escritor) e teve igualmente o reconhecimento tardio de Thomas Mann que o comparou a Musil. Estão a verificar este vaivém de considerações póstumas entre um Cesariny e estes últimos. Adiante, que isto vale pouco. 

Hermann Broch dá-nos a sua visão de uma cultura política e social alemã em decadência rápida de valores e de pontos cardeais seguros sobre o império que se esboroa e o fim da I Guerra Mundial. Todo um pathos que vai levar a uma ascensão do nazismo e do totalitarismo que ele conheceu bem, tendo escapado por pouco à morte quando foi aprisionado por aqueles. Talvez por isso, coloque geograficamente o romance na Alsácia, mais concretamente na cidade de Trier, terra natal de Marx, que mudou de mãos variadíssimas vezes entre franceses e alemães. Trier é também Trèves. As personagens são esmiuçadas até ao limite por Broch e é esse facto que mais interage com a cumplicidade do leitor. Nelas vemos um Bertrand cínico, rico, burguês, que esconde a sua homossexualidade maltratando psicologicamente as mulheres com quem se cruza ou que se cruzam com os seus amigos; von Pasenow, militar de carreira apaixonado por uma prostituta, Ruzena, que abandona na pior das misérias, para continuar a casa de família, casando por interesse e que reaparece no terceiro romance completamente derrotado pela inversão de valores que não consegue compreender; Erch, um anarquista que deixa de o ser para abraçar a bíblia evangélica, protestante; Huguenau, um arrivista, desertor, assassino de Erch, que monta o elevador social com um sucesso material e moral imenso. É ele a quem Broch dá um exemplo máximo do que é um protagonista, um actor grandiloquente do totalitarismo.

Dir-me-ão que a descrição desta narrativa é mais do mesmo. Em Hermann Broch, não. O facto de a trilogia ser chamada de «sonâmbula» não é pelo facto destas personagens estarem adormecidas ou num sono hipnótico conforme as circunstâncias políticas, ou fosse do que fosse. É porque mudam consoante os ventos e não lutam para que os factos sejam outros. Não agem. Não produzem ideias que possam transformar em acção, como diria o muito citado Hegel, a quem Broch dá uma primazia especial (também não falta Kant ou Fitche). Há uma personagem, contudo, a que dei talvez demasiada atenção no último romance, aquele em que tudo arde, o mais terrível, em que o fim da guerra se transforma numa revolução, quando da tentativa soviética de 1918: essa personagem é Hanna Werdling. Leitora compulsiva, bela, casada com um marido ausente na guerra, comporta-se como uma espécie de máquina sexualizada quando ele vem de licença, sem qualquer efusão sentimental. Não nutre sensibilidade alguma, talvez um amor distante pelo filho adolescente, mas nem isso a demove de estar distanciada de tudo, de todos, numa enorme casa, cujo jardim a chama constantemente para que observe a mudança única que vê: a da Natureza. A própria natureza mata-a com a gripe «espanhola», também ela uma das epidemias de 1918.

Deixemos Broch dizer ao que vem: «Este romance assenta no pressuposto de que a literatura tem como missão ocupar-se, por um lado, daqueles problemas humanos que são rejeitados pela ciência, por não serem minimamente acessíveis a um tratamento racional e apenas levarem uma vida aparente num jornalismo filosófico moribundo, e, por outro lado, daqueles problemas que a ciência, no seu progresso mais lento, mais exacto, ainda não abarca. O património da literatura, entre o 'já não' e o 'ainda não' da ciência, tornou-se, assim, mais limitado, mas também mais seguro e inclui todo o domínio da experiência irracional, situando-se, mais precisamente, no terreno fronteiriço em que o irracional se manifesta como acto e se torna possível exprimi-lo e representá-lo. Daí resulta a tarefa específica de mostrar como o onírico determina a acção e como acontecer está constantemente pronto a deslizar para o onírico.» (pág.8)

Ler os autores de cultura alemã que descrevem o império e, depois, a República de Weimar é uma lição actual, em que a realidade, tantas vezes analisada por Hermann Broch, se funde com o irracional como demonstra o texto acima. O onírico pode transformar-se rapidamente (mais depressa do que julgamos possível) num pesadelo em que ninguém sai ileso. A resistência queda-se perante o absoluto do totalitarismo, porque há o sonambulismo das massas e, dentro delas, a individualidade pouco mais é do que um arrobo, uma mentira que se vende a quem dá mais por ela, pela subjugação do tal mal de que fala Arendt.

alc

quarta-feira, maio 28, 2025

«Esta Má Fama...», Guy Debord

 

Letra Livre, 2014. Tradução e notas de Júlio Henriques
Talvez um dos mais atacados e vilipendiados membros da Internacional Situacionista, de certeza aquele que mais sofreu na pele as invenções e maquinações que o poder de Estado francês (e não só) exerceu sobre uma pessoa. Guy Debord esteve a pontos de ser detido por assassínio do seu editor Gèrard Lebovici - uma outra história que um dia valerá a pena contar aqui - e isto tudo com a complacência, se não mesmo cumplicidade do poder mediático, da direita, obviamente, e de uma certa esquerda estatista que perdeu totalmente a vergonha perante a ignomínia do que disseram sobre ele: ''agente secreto ao serviço de interesses inconfessáveis, talvez americano ou talvez «soviético», avençado por um cunhado antiquário de Hong Kong, excepcionalmente rico que induziu estrategicamente o poder político a reforçar o seu poder, um homem que organizou as maiores violências do Maio de 68 incluindo as pichagens mais criativas (talvez haja alguma verdade, mas seria muito para um homem só), estalinista, nazi, um profeta ferido na sua deriva utópica, um tipo de gostos requintados comparando-o ao Cardeal de Retz de quem imitava a escrita''. 

Acredito que é necessária muita imaginação para o insulto e a ofensa e para inventar factos totalmente falsos como este pequeno livro demonstra em defesa do próprio. E assim numas meras 96 páginas ficamos cientes do papel vergonhoso a que se prestaram aqueles que, não lendo, como é fácil de observar, «A Sociedade do Espectáculo» ou, mais tarde, os seus «Comentários...» atacaram o homem, não sem saírem completamente ridicularizados na desmontagem dessa tentativa por Guy Debord. Estão lá todos os nomes. 

«(...) Nunca detestei os ricos pelo simples motivo de o poderem ser. Bastava-lhes saberem-se comportar com tacto suficiente; e com bastante estilo. Não teria eu sido muito mais censurável se a riqueza deste ou daquele indivíduo tivesse parecido impressionar-me? se lhe tivesse dado a pensar que podia influenciar-me por causa desse único detalhe? Ou que podia simplesmente falar comigo num tom mais alto? Creio que eles viram que não. Seja como for, nunca pensei de outra maneira, e agi em consequência como devia. Nunca fui rico; e também nunca tive de reconhecer-me como alguém necessariamente pobre. Nunca nada estava garantido. ''O tempo dos gonzos'', para o dizer em termos shakespearianos, e desta vez era verdadeiramente por toda a parte: na sociedade, na arte, na economia, na própria maneira de pensar e de sentir a vida. Já nada tinha medida. Acima de tudo, fui alguém desses tempos, mas sem partilhar as suas ilusões. Gabo-me de ter sobretudo raciocinado segundo o princípio que diz: ''A cavalo dado, não se olha o dente.'' Pratiquei o potlach com grandeza bastante para me não inquietarem algumas delicadezas excessivas.» (pág.58)

Sendo mais avisado ler os livros teóricos de Debord sobre a sua análise do mundo que há-de vir, deixo-vos este pequeno extracto extremamente visionário, escrito em 1993:

««(...) Por todo o lado, a especulação, para concluir, tornou-se a parte soberana de toda a propriedade. Autogoverna-se mais ou menos, segundo as preponderâncias locais, à volta das bolsas, dos estados ou das máfias, federando-se todos numa espécie de democracia das elites da especulação. O resto é miséria. Por toda a parte o excesso de simulacro explodiu como Chernobil, e por toda a parte a morte se espalhou tão depressa e tão maciçamente como a desordem. Já nada funciona, e já não se acredita em nada.» (pág.80)

Debord, doente, suicida-se um ano depois destas palavras premonitórias ainda os Calígulas e os Neros contemporâneos não tinham chegado ao poder e a mentira instalar-se em «toda a parte».


alc

quinta-feira, maio 22, 2025

«Enclave», Maria Lis

 

Língua Morta. Outubro de 2024. Fotografias de Ana Filipa Correia
Sendo o prometido devido, eis a ficha de «Enclave» de Maria Lis, poesia inquieta, não classificável (e por que o haveria de ser?), incomodada, mas paradoxalmente suave.

As crianças não são brandas, nem doces. Por vezes, são cruéis tal como nos diz o lugar-comum e o pobre do Golding. Maria Lis parece querer protegê-las dos seus diversos «encarregados» porque há sempre um encarregado, um prefeito que vela por nós, que nos limita os desejos, que nos ordena as regras, um director que domina o sonho infantil: «As palavras difíceis precisam de um encarregado» (pág.9). 

A proposta poética é, também ela, a da invisibilidade, uma constante em «Enclave»: «A invisibilidade começa por ser um poder precioso» (pág.17). Mesmo que algumas crianças tapem os seus olhos quando de lhes pede para se esconder. O não ver, o não querer ver, o não tolerar estar aqui. Ou fugir nos tejadilhos dos comboios em linha recta, sem destino, ou numa eterna planície desértica sem fim:

«A criança que não manda
gira o corpo ao redor de si mesmo
e vê os comboios cumprirem a rota
que o dono decidiu.»
(pág.36)

No tejadilho de um comboio em andamento «um tejadilho passa a ser um lugar / onde a lei não vinga» sentimos o vento na cara e nos cabelos, no corpo aberto em equilíbrio, com os Apaches e Geronimo acompanhando-nos em ritos estranhos e em cavalos alados. Seja o que for este sonho constante de fugir até ao momento do embate, um dos momentos mais empolgantes dos versos de Maria Lis neste «Enclave»: «(...) estamos sempre desprevenidos / no momento do embate.» (pág.42) Perceberemos melhor se tivermos o livro à mão e o entendermos como um todo, juntando, inclusive poemas soltos. Arrisco:

«Não nos queremos ter de pé
porque o corpo cede
e todos os planos para a revolução
foram ficando para trás
    mesmo aqueles que eram ponto a ponto
    escandidos em etapas claras
    sustentados pela evidência
    de ser para todos»
(pág.41)

«Da ideia de um todos
tantos foram sendo deixados

que risco da agenda
as alíneas do pacto de deus de Abraão
e do dicionário
a entrada que descreve os eleitos
e de todos os tomos d'O Capital
risco a palavra proletariado.

Não existe fatalidade para as leis económicas
nem um devir
nem quem se encarregue
nem advento
nem dialéctica interna do capitalismo
nem proporcionalidade
nem maturação da classe explorada
estaremos sempre desprevenidos
no memento do embate.»
(pág.42)

«Estaremos sempre desprevenidos no momento do embate», mesmo quando estivemos prestes a conseguir sair do onírico das utopias e continuar a deslocar-nos para o abafado e sufocante concreto.

E este devir selvagem das crianças e dos revolucionários apodera-se, numa metáfora extraordinária, de Geronimo numa fotografia de 1886, cansados de uma fuga constante, encostados aos carris da Southern Pacific, no Texas:

«(...) A última rendição de Geronimo
dá-se no mesmo ano, não sem que o governador de Sonora
se tenha antes espantado pelos 500 ou 600 civis mortos
                                                                    ou pilhados
por 16 dos seus guerrilheiros, em dois ou três meses.»
(pág.49)

Todas as possibilidades se abrem, portanto, mesmo contando com a exaustão mortal de Geronimo e o abandono dos seus. Ou, então, a possibilidade, a dúvida, de 

«(...) como durante a construção da muralha da China: 
sem dúvida devem existir brechas
que não foram absolutamente cobertas.»
(pág.89)

Torna-se logo evidente que nos poemas seguintes a solução preconizada face à muralha assente na reinvenção moderna do trabalho escravo é «... fazê-la cair de vez.» Tal como os muros do México que os sucessivos presidentes americanos ergueram em milhares de quilómetros, tal como as crianças indostânicas que entrelaçam os fios das nossas camisolas. De qualquer modo, este «Enclave» tenta sair da redoma imposta das nações, das fronteiras, dos papéis, como escreve Maria Lis. É um enclave em expansão, movimento do universo que tem um «destino» para amanhã se, entretanto, os adultos não perderem «a sua incapacidade de magia» de que as crianças são portadoras.

Cita Benjamin, certeira. Do seu suicídio, nos Pirenéus, com uma overdose de morfina, enquanto aguardava a deportação com outros judeus junta os seus poemas a uma frase póstuma:

«Num dos seus escritos
publicados postumamente
define o capitalismo
enquanto um culto 'sem sonho nem piedade'
religião 'da ostentação de toda a pompa sacral
e do empenho extremo do adorador'
onde os 'dias de trabalho e de culto'
indistintos
partilham nave e altar.

Então um mundo onde a culpa
se sobrepõe à esperança, à redenção
e o Éden se apresenta como uma grande loja
onde a brisa de um ar condicionado
de tão previsível
não causa arrepio à pele
(...)»
(pág.131)

Depois de lembrar Fra Angelico, é impossível não pensarmos no anjo do desespero de Heiner Müller e do anjo amedrontado de Klee ao ver o mundo destruído: 

«Sabem que não há anjos a evocar / ninguém, nem homens, nem animais / que desçam àquela terra / para algum alívio / e que o corpo iluminado / tem necessariamente / sombras do lado oposto a esse / onde a luz cai.» 

Já não há anjos, nem no desespero do mundo. É possível que já tenham abandonado o tal Éden e sejam tão mortais como nós; mas descer em qual terra? Em que fronteira pedir-lhe-ão a identificação? Só explodindo o enclave. Seja.

alc

segunda-feira, maio 19, 2025

Solução na Dissolução?

A formação de um partido da esquerda radical é tão arrebatador como a sua própria dissolução. Principalmente, quando este deixou de o ser. A construção do novo é a única hipótese legítima. O maior problema dessa esquerda é que fez, como Fausto, um pacto com Keynes que a amoleceu, tirou-lhe as verdadeiras perspectivas de mudança para um mundo novo, diferente, que valesse a pena ser vivido em comum.

alc

sexta-feira, maio 16, 2025

«Turbulenta Forma», Maria Lis

 

Língua Morta, Novembro de 2023, ilustrações da autora
Do que conheço de Maria Lis são os dois livros que tenho comigo e que a Língua Morta editou. Este, «Turbulenta Forma», de 2023 e o mais recente «Enclave» da mesma editora. Prepara-se outro, «Hortus Conclusus», segundo o Ípsilon de 31 de Janeiro deste ano, a quem Maria Lis deu uma entrevista, fazendo notar que se sente desconfortável quer com este tipo de exposição, quer com os festivais literários. Diz o óbvio: os livros que edita, é ela. Tão só.

Estava para escrever sobre os dois já publicados, nesta pequena ficha. Contudo, foi-me impossível fazê-lo porque este livro causou-me uma viva impressão. «Enclave» ficará, pois, para uma próxima oportunidade que vai ser muito em breve, porque não os larguei. Estão na mochila.

O livro é composto sobre papel quadriculado com palavras em colagens e ilustrações da própria Maria Lis. Antes que me debruce sobre um outro poema que vos quero expôr, o que é sempre subjectivo, como sabeis, retiro dois excertos que me acompanham desde sempre e que me obrigam muitas vezes a consultar. 

A experiência da colagem e o conceito de «détournement», traduzido por Júlio Henriques por «desvio» e que a Internacional Situacionista deu a conhecer como um dos símbolos mais importante do movimento e que a veio recuperar artisticamente não sem antes citar o movimento Dada, a anterior Internacional Letrista e o Surrealismo, este último alvo de bastantes críticas por parte da Internacional. Diz a IS, logo no seu número inaugural, em 1958, que a definição situacionista de «desvio» é esta:

«Emprega-se como abreviação da seguinte fórmula: desvio de elementos estéticos pré-fabricados. Integração de produções artísticas actuais ou antigas numa construção superior (...)» (Internacional Situacionista - Antologia» Antígona, 1997). A poesia de Maria Lis, não seguirá esta linha que é anacrónica, fora de um tempo em que se tentou a decomposição, ou o desvio, se quiserem, de uma sociedade que, nos anos 50 e 60, transformava tudo em mercadoria, em consumo, inclusive as relações pessoais, chamando para si e absorvendo os subordinados e os explorados. O resultado está à vista: o inferno mora ao lado porque ninguém os parou. É interessante verificar, todavia, o que Maria Lis, no Ípsilon, afirma: «O capital é muito acrobático a apoderar-se das nossas ideias, da nossa personagem. Com muita facilidade tornamo-nos caricaturas de nós próprios.» Esta lucidez sobre a sociedade que a rodeia, que nos rodeia e consome quotidianamente, é o alfa e o ómega da poesia de Maria Lis que acredita no pensamento mágico das crianças como forma de erguer utopias que podem convocar-nos ou não. E não descura os pensadores, os revolucionários, os filósofos, os que não se ajoelharam ao conformismo ou à alienação dos mercados.

Maria Lis é uma lufada de ar fresco na poesia portuguesa onde se contam pelos dedos os bons poetas, os que olham à volta e não estão de acordo. Aqueles que veem o que é subterrâneo, os que nos querem esconder ou enterrar nas suas grutas os nossos desejos. No fundo, os criadores de novas subjectividades como é esta poesia. Aqui, a colagem de letras e a composição das palavras ganham um sentido que não é só o acaso a criar. Não pode ter sido apenas assim, a técnica muito própria de Maria Lis. Mas é provável que tenha encontrado, neste maravilhoso jogo, algo de surpreendente, qual deriva que a tivesse levado a uma lógica muito singular de um poema. Um jogo em que o pensamento, a letra e a palavra se conjugam. A ideia está lá. Gravada.  

Lembrei-me igualmente de Álvaro Lapa: em 2018, encontrava-me no Porto e assisti à maior exposição sobre este autor em Serralves. Sabemos que utilizava comummente as colagens e é interessante verificar o que ele dizia sobre a pintura e a palavra quando se referia a esta técnica. As palavras são de Estrella de Diego e constam do catálogo de «No Tempo Todo» título da exposição: «[a ideia de colagem]: unir partes aparentemente díspares e até contraditórias num todo renovado e capaz de as dotar de uma nova vida em harmonia: capaz até de dar coesão aos opostos e de os integrar numa estrutura inesperada onde propõem significados diferentes. Por vezes, face ao excesso, a escassez agudiza as imagens; torna-as livres, radicais.» (pág.23)

A poesia de Maria Lis, neste «Turbulenta Forma» é claramente livre e radical. Harmonia em fogo lento.

segunda-feira, maio 12, 2025

«Tóquio Express», Seicho Matsumoto

 

Presença, 2025. Tradução do japonês de André Pinto Teixeira
Um policial japonês por dia, nem sabe o bem que lhe fazia! Dizem que Seicho Matsumoto é a Agatha Christie do Japão e este livro uma «obra-prima». O que não se compreende é que, mesmo escrito originalmente em 1958, tenha sido banido «por ter ideias ocidentais decadentes», segundo o Financial Times. Nós exportamos decadência aos molhos, está visto, os japoneses suicidam-se aos pares nos chamados «suicídios de amantes» tema central desta obra. O autor não nos engana sobre este fenómeno muito nipónico: 

«A ideia de que um homem e uma mulher encontrados nos braços um do outro devam ser considerados amantes suicidas quase dá vontade de rir. No entanto, desde tempos imemoriais que milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado, sem que ninguém suspeitasse de qualquer prática criminosa. Quando a morte é vista como um suicídio de amantes, a investigação criminal do incidente nunca é tão exaustiva como em casos de homicídio. Mal há uma investigação digna de tal nome.» (pág.181) Chamo-vos a atenção para as expressões «desde tempos imemoriais» e de «Milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado [de suicídio].» Como o caso interage com uma grande corrupção num ministério japonês ficamos, igualmente, a saber que quando são apanhados nessas teias os funcionários também se suicidam, atirando-se pela janela fora de um qualquer arranha-céus. Não saberemos, portanto, quem ficará para contar a história, mas Matsumoto não é muito original: os corruptos de cima safam-se e até melhoram o seu estatuto político em cargos de maior prestígio em remodelações governamentais para esconder esses tais casos e o mexilhão suicida-se, embora neste caso houvesse mesmo assassinato, visto que estamos num policial muito cerebral, para rimar. Estamos, pois, no final dos anos 50, cujos mistérios ainda são revelados pela intuição e dedução. Aqui não há tiros, nem câmaras de vigilância, drones, ou localizadores gps em telemóveis. Também não há escutas ou satélites. 

Contudo, há imensos horários de comboios por todo o Japão, visto que os assassinos se fazem mover por este transporte em horários cruzados e estudados ao pormenor para construírem um forte álibi. Quando se dá o suicídio, aliás, assassinato, os perpetradores têm de estar no outro lado do Japão. Fácil. No entanto, os polícias descobrem tudo no final, e nós muito antes, visto que a Editora, por excesso de zelo, nos dá a pista. Se até às páginas 150 (do total de 191!) ficamos a saber que se movem em diferentes comboios e num ferry, obrigando-nos a estar com enorme atenção à lógica das viagens, a Editora, não se sabe porquê faz este aviso: «Nota da obra original: os horários dos comboios e aviões referidos têm como base o ano de 1957»! Ora, ainda não se tinha falado em aviões na trama da história do crime. Faltando ainda 40 páginas para o fim percebemos que o assassino apanhou um avião da gloriosa Japan Airlines!! Certíssimo. Obrigado, Presença! 

alc

quinta-feira, maio 08, 2025

«Kairos», Jenny Erpenbeck

 

Relógio D'Água, Dezembro de 2024. Tradução de António Sousa Ribeiro
Ainda não entendi a razão pela qual uma boa escritora terá de ser «uma aposta segura para um futuro Prémio Nobel», isto segundo o respeitável «The Guardian» seguido da não menos respeitável editora que o cita na contracapa. É que existem exemplos tramados de nobelizáveis, digamos assim.

Jenny Erpenbeck é, sem dúvida, uma escritora singular, que nos remete para vivências que têm em comum com uma plêiade de obras que vieram do antigo leste europeu, neste caso da ex-RDA, onde viveu a sua juventude até à queda do Muro. Não sendo uma Herta Müller, é muito consistente e não cai em lugares-comuns que nós, nas chamadas democracias ocidentais, estaremos à espera. As descrições, por vezes longas e pormenorizadas, da sua vida que partilha com um apparatchick da cultura (não sem que tenha passado uns meses na Juventude Hitleriana, durante o final da guerra), trinta e quatro anos mais velho que ela, e, por ele, conhece as obras de Brecht, de Heiner Müller ou Berghaus. A personagem Katharina estuda cenografia e projecta palcos para ópera, para o teatro e para concertos musicais, nomeadamente no Conservatório de Eisler. É interessante relacionar a sua actividade profissional com a construção e manutenção do regime alemão do leste, onde é descrita a encenação total de uma sociedade que se encontrava exausta. Katharina distancia-se dessa política, não lhe interessa sequer analisá-la, mas não é uma sonâmbula. Está viva, claudica várias vezes na sua relação, traia-a, mas está sob a sua completa alçada. Não consegue sair dela e é essa tensão que atravessa todo o «Kairos» que, como sabemos, é definido como o tempo oportuno, bem diferente do cronológico. Por fim afasta-se.

Metáfora interessante é a vida de Hans, de quem Katharina depende em todos os planos da vida. Ela tem 20 e repete incessantemente que o ama. No entanto, esse amor é tão obsessivo quanto é exigido pelo Estado: toda a sociedade, as instituições, os empregos, a cultura, o dinheiro, os apartamentos, dão o que lhes é dado em obediência. É nesse sentido que há uma relação sado-masoquista entre Hans e Katharina. «O exame exaustivo das ruínas» é o que faz esta personagem nas suas viagens quer, inclusive, ao ocidente, quer à Alemanha Federal, a Colónia, quer à parte ocidental de Berlim ou aos países Bálticos. A comparação é inevitável com a RFA, principalmente após a queda do Muro, mas não do modo que esperaríamos. Descreve-nos, antes, os comunicados da oposição a Honnecker, que pretendiam aprofundar o socialismo e negava o capitalismo, enquanto a Stasi proibia os termos «glasnost» ou «perestroika». Depois de se sentir atónita pelos cidadãos da RDA não terem direito a manifestar-se sobre a Constituição federal que lhes foi imposta, após as ondas de desemprego, da destruição de um estado que lhes vendia o pão a 7 pfeniggs enquanto um casaco custava 700 marcos, uma inflação descontrolada, a fome a instalar-se e o sentimento de vergonha, quando o Muro foi aberto e a RFA oferecia 100 marcos a cada visitante oriental, por um só dia, para se comprar qualquer coisa! 

«(...) O despertar que pouco antes estava ainda em contradição com a ordem existente no Leste não tarda a tornar-se em contradição com a ordem do Ocidente que aí vem.
Pessoas que, no Inverno e no início da Primavera, viveram o êxtase da emancipação têm agora, em vez de forjar projectos inéditos, de estudar os diários do governo da Alemanha Ocidental.
Deveriam, em vez de discutir quem há-de agora dirigir este ou aquele departamento, esta ou aquela brigada, apurar o que é uma SARL ou como é o direito das fundações oeste-alemão. (...)
Aprenderam na escola o que significa a propriedade privada dos meios de produção, o que significa uma sociedade funcionar segundo os princípios da economia de mercado, mas nunca relacionaram isso consigo mesmos. Para que as instituições e, assim, os seus postos de trabalho sobrevivessem ao Outono, teriam, elas, as pessoas correspondentes, de ter um passado diferente do que têm, teriam de ser diferentes do que são, teriam de passar a ser o que não são.
Tudo isso que deveriam fazer, elas não sabem, não querem, não está em seu poder.» (pág.290)

«(...) Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais. Será que, porventura, também ela não tardará a ser apenas clientela?» (pág.288)

Entrar no mundo de Katharina é descobrir uma outra dimensão. Não geográfica, nem só política, nem apenas social. É estarmos com ela e tentar compreender as suas contradições, que provavelmente serão igualmente as nossas e é o que faz este livro ser interessante, porque somos obrigados a um exercício de desconstrução/construção psicológica enquanto a História de assenhora do seu destino, sendo ela um peão que resiste em sê-lo. Não sabemos se ganha este jogo.

alc