segunda-feira, novembro 03, 2025

«A Vegetariana», Han Kang

D. Quixote, 6ª ed. 2024 (1ªed. 2016). Tradução do inglês de Maria do Carmo Figueira

Tanto me falaram deste livro de Han Kang, esta coreana que foi nobelizada no ano passado, que tive de ler «A Vegetariana». Iniciei-o no Dia de Finados e acabei-o hoje não como dever cumprido, mas com agrado. Inquestionável que é uma boa escritora o que deixa em claro a pergunta irónica repetida de um amigo meu que vos transmito: «Um Nobel da literatura e, ainda por cima, bom escritor?».

Seja como for e não cedendo à tentação de vos contar a narrativa de «A Vegetariana» fiquei apreensivo ao terminá-la. Não por qualquer causa de índole literária ou da história em si, mas pelo tema quase constante das obras vindas da Ásia, mais abrangentemente, de quase todo o Oriente. A ligação íntima das palavras, dos temas literários e das personagens que as compõem com a  Natureza vegetal, com a flora. Desde sempre e com quase todos os autores japoneses, chineses, coreanos, vietnamitas... há florestas frondosas, folhas multicolores, charcos com vida, uma paleta autêntica da flora mitificada em cada palavra ou «florestas ondulantes que cobrem os continentes como um mar impiedoso» que lhe «envolvem o corpo e elevam-na», como escreve Han Kang. O Ocidente nada tem de parecido na literatura contemporânea: é feita de cimento e ladrilhos e quando existe a chamada Natureza ou está ser destruída, ou aboletada como utilitária para as actividades humanas. No Ocidente, o respeito pelo som do vento nas árvores, pelo silêncio, pela escuridão e mistério das florestas são humanizadas violentamente com o arborismo, pistas de bicicletas, casas para observação de pássaros, gravilhas, desbastes, cortes por instituições ditas «amigas do ambiente». 

Lembro-me de páginas inesquecíveis sobre a flora de Mishima, poemas de Bashô ou de Shiki, Kenzaburõ Õe, Murakami, Kawabata, Jung Chang, Can Chue, Yuo Hua, ou Rithy Panh. Isto para ficarmos somente pelos japoneses, chineses ou vietnamitas. No Ocidente, as flores não têm o carácter místico que adquirem no Oriente. As flores politizam-se facilmente como a papoila ligando-a aos mortos da I Guerra Mundial na Grã-Bretanha, a flor de lis para indicar o nacionalismo francês, o cravo para a Revolução portuguesa de 74, ou o cipreste para localizar cemitérios... seja como for a flor, no Ocidente, vulgarizou-se ao ponto de as não vermos e muito menos no parco ambiente selvagem que ainda existe pela Europa. Não pensem observar muitas «florestas ondulantes» por cá.

A história de «A Vegetariana» desenrola-se num ambiente sufocante de uma grande cidade, paradoxalmente. Mas o desejo dos grandes espaços, a esquizofrenia latente, cujas causas se encontram numa educação violenta ou numa vida submissa para além do suportável, na personagem principal, a tentativa de se «esconder» na terra, a quem ironicamente chamamos «mãe». 

«Teria ela confundido o chão, de cimento do hospital com a terra da floresta? Ter-se-ia o seu corpo metamorfoseado num tronco robusto, com raízes esbranquiçadas a nascerem-lhe das mãos e a agarrarem-se à terra escura? Seria possível que as suas pernas se esticassem no ar, ao mesmo tempo que os seus braços se enterravam em direcção ao centro da terra, com as costas rígidas e direitas de forma a permitirem que os seus membros crescessem? Enquanto os raios de sol inundavam o corpo de Yeong-hye, teria a água que saturava a terra sido absorvida pelas suas células, acabando por brotar flores da sua púbis? Seria possível que, quando Yeong-hye se equilibrara de pernas para o ar e alongara cada fibra do seu corpo, todas essas coisas tivessem despertado na sua alma?» (pág.177)

alc