Deriva das Palavras

domingo, dezembro 14, 2025

"O Náufrago", Thomas Bernhard

 

Relógio D'Água, 2024. Tradução de Leopoldina Almeida 



 

«Um Sonho», de August Strindberg

Que interpretações fantásticas de «Um Sonho», de August Strindberg. No Teatro da Cerca de S. Bernardo e encenado por António Augusto Barros. 
 

terça-feira, dezembro 09, 2025

"La Fôret de Flammes et d'Ombres", Akira Mizubayashi

 

Gallimard, 2025
Isto das leituras e dos livros tem o que se lhe diga. Acredito que existe uma rede completamente informal de leitores que interagem movidos pela empatia. Assim foi com este livro de Akira Mizubayashi, autor japonês que não conhecia: mão amiga apresentou-me este «La Fôret de Flammes et d'Ombres» e durante algum tempo vi-me envolvido numa escrita extremamente leve sem que a leveza tenha alguma coisa a ver com a facilidade. Nada disso. A leveza de que falo é uma espécie de levitação durante o processo de leitura devido à toada lírica imprimida pela escrita, pelo extraordinário bom gosto assente nas descrições da vida quotidiana, do amor existente nas personagens e mesmo até na descrição das cenas de guerra em que o Japão se viu envolvido pela obra e graça do imperador Hirohito e dos fascistas que o rodeavam. Aqui, neste extraordinário romance, não há ódio avulso. Há uma recusa silenciosa do totalitarismo em que a arte surge como escape, memória e alavanca para um mundo onde a liberdade tenha sentido. 

O triângulo existente entre as personagens Yuki, Ren e Bin dão à narrativa essa leveza de que falava atrás. São pessoas justas no seu entendimento do outro, compreendem-se totalmente, são imensamente livres porque não se batem em competições inúteis. Cada um tem a sua sensibilidade, a sua mundividência, uma maneira muito própria de ser e de se entreajudarem sem objectivos escondidos, sem que haja uma quebra na forte amizade que os uniu, mesmo nas piores condições de uma guerra terrível onde o Japão conheceu o apocalipse nuclear. O fim da guerra significou igualmente o fim de um regime e o começo de grandes viagens protagonizadas pelas personagens e pelos seus descendentes até aos dias de hoje. Procuram a completude o que acredito que tenham conseguido. A técnica narrativa utilizada por Mizubayashi é fulgurante, de uma síntese que nos espanta a nós leitores.

Não é só a técnica narrativa do autor que admiramos. Quando, no seguimento da leitura de «La Fôret de Flammes et d'Ombres», nos vimos «obrigados» a ouvir a Cavatina, op.130, de Beethoven ou a Nº2, op.13, de Mendelssohn e tentamos visionar as obras pictóricas de Iri e Toshi Maruki é porque o livro e o seu autor cumpriram realmente o seu papel. Perceberão porquê ao ler o livro se assim o entenderem. E mais óbvio ainda é que imaginamos os quadros de Ren tal como nos são descritos enquanto os quartetos de cordas nos dão a conhecer uma música que adivinhamos tão suave, como suaves são os diálogos entre as personagens.

Deixo-vos com um extracto de um diário de uma das personagens, escrita magistralmente por Akira Mizubayashi: «(...) A Arte - tanto a música como a pintura - reúne as almas, abre-as umas a seguir às outras, porque revela e revive nelas este poder de empatia, esta força de identificação singular com o ser sofredor, com o morto, o mais sofredor de todos os sofredores. A Arte exacerba esta faculdade fundamental do homem, empurra-a para o seu paroxismo. É assim, creio, que resiste à morte. (...)» (pág.264)

alc

segunda-feira, dezembro 08, 2025

"Um Saco de Ossos", Maria Lis

 
Língua Morta, 2025

Maria Lis não deixa de nos surpreender com este seu terceiro livro de poesia. Revisitando Georgia O'Keeffe, leva-nos por extensas caminhadas em espaços improváveis no Novo México, no Texas ou ainda em Nova Iorque, deixando-nos uma quadrícula onde pontificam cores, pedras, águas, plantas. A cor está sempre presente dum modo quase obsessivo «...perguntas-me pela música vou respondendo por cores / as palavras não levam a melhor...» e a matéria e a forma de tudo o que nos rodeia, inertes ou vivas, atravessam os poemas «...por ora pinto flores / já que a realidade não precisa de ajuda / posso dedicar-me por inteiro à forma / é que a cor, o âmago, o cheiro / vêm com cada coisa de jeitos torcidos e grotescos...», deixando-nos embrenhados numa mundividência singular protagonizada por O'Keeffe e assenhoreada poeticamente por Maria Lis. Essa osmose, essa junção, é realizada por uma comunicação epistolar baseada provavelmente (soubemo-lo, mais tarde, pelo posfácio) pela correspondência com uma amiga e que a poeta adquiriu num alfarrabista de Santa Fé. 

É um livro de poesia que não nos deixa indiferentes, tal como o seu posfácio: violentamente, Maria Lis atropela-nos com a nossa derrota muitas vezes não assumida, na impossibilidade de questionamento político, na eterna fénix capitalista que se ergue sempre vitorioso, retirando-nos a possibilidade de uma vida própria. Resta-nos a fuga ou a poesia dos sentidos. Como este livro.

alc.

sábado, dezembro 06, 2025

"Oráculo Portátil e Arte da Prudência", Baltazar Gracián

 

VS. Editor, 2021. Tradução de Miguel Meruje
«Oráculo Portátil e Arte da Prudência» é um livro que se deve ler devagar. Baltasar Gracián oferece-nos um conjunto de conselhos em forma de aforismos que nos leva a pensar sobre a arte de viver num mundo intemporal onde vinga a ignorância, a culpa, a maledicência ou, entre muitas outras iniquidades, a cupidez e o embuste. A estupidez e a ousadia dos incompetentes também têm um lugar destacado, mas, ainda assim, sobressaem os remédios para as esconjurar.

Gracián sabe do que fala. Jesuíta, com evidências claras para a escrita e literatura, foi obrigado a vergar-se à disciplina férrea e militar da Companhia fundada por Loyola. Desde a proibição dos seus escritos pela Inquisição até à tortura a pão e água, aconteceu de tudo um pouco: censuras, privação de leituras de livros, prisão, proibição de uso de papel e plumas, não bastaram para a desistência deste homem luminoso. Ele sabia onde doía na sua luta contra a hierarquia e poderosos. Este livro destinava-se aos comuns, aos que labutavam pela sobrevivência num mundo «às avessas», não eram conselhos para príncipes que já tinham a sua maquia com Maquiavel, fosse este irónico ou subserviente. 

Talvez por isso foi lido e seguido, desde meados do século XVII. Assim o fizeram Voltaire, Schopenhauer, Nietzsche, Lacan, Phillipe Sollers ou Debord. Desenvolvido numa estrutura literária barroca, contemporâneo de António Vieira e Quevedo, soube aliar uma crítica política a um pensamento prático da vida comum, alicerçado em paradoxos, aforismos ou puro jogo de palavras rodeadas de brilho. Numa época em que as palavras são amiúde esvaziadas de sentido, não deixa de ser necessário voltar aos séculos de ouro da literatura. Baltasar Gracián é um desses expoentes.

alc