Língua Morta, Novembro de 2023, ilustrações da autora
Do que conheço de Maria Lis são os dois livros que tenho comigo e que a Língua Morta editou. Este, «Turbulenta Forma», de 2023 e o mais recente «Enclave» da mesma editora. Prepara-se outro, «Hortus Conclusus», segundo o Ípsilon de 31 de Janeiro deste ano, a quem Maria Lis deu uma entrevista, fazendo notar que se sente desconfortável quer com este tipo de exposição, quer com os festivais literários. Diz o óbvio: os livros que edita, é ela. Tão só.
Estava para escrever sobre os dois já publicados, nesta pequena ficha. Contudo, foi-me impossível fazê-lo porque este livro causou-me uma viva impressão. «Enclave» ficará, pois, para uma próxima oportunidade que vai ser muito em breve, porque não os larguei. Estão na mochila.
O livro é composto sobre papel quadriculado com palavras em colagens e ilustrações da própria Maria Lis. Antes que me debruce sobre um outro poema que vos quero expôr, o que é sempre subjectivo, como sabeis, retiro dois excertos que me acompanham desde sempre e que me obrigam muitas vezes a consultar.
A experiência da colagem e o conceito de «détournement», traduzido por Júlio Henriques por «desvio» e que a Internacional Situacionista deu a conhecer como um dos símbolos mais importante do movimento e que a veio recuperar artisticamente não sem antes citar o movimento Dada, a anterior Internacional Letrista e o Surrealismo, este último alvo de bastantes críticas por parte da Internacional. Diz a IS, logo no seu número inaugural, em 1958, que a definição situacionista de «desvio» é esta:
«Emprega-se como abreviação da seguinte fórmula: desvio de elementos estéticos pré-fabricados. Integração de produções artísticas actuais ou antigas numa construção superior (...)» (Internacional Situacionista - Antologia» Antígona, 1997). A poesia de Maria Lis, não seguirá esta linha que é anacrónica, fora de um tempo em que se tentou a decomposição, ou o desvio, se quiserem, de uma sociedade que, nos anos 50 e 60, transformava tudo em mercadoria, em consumo, inclusive as relações pessoais, chamando para si e absorvendo os subordinados e os explorados. O resultado está à vista: o inferno mora ao lado porque ninguém os parou. É interessante verificar, todavia, o que Maria Lis, no Ípsilon, afirma: «O capital é muito acrobático a apoderar-se das nossas ideias, da nossa personagem. Com muita facilidade tornamo-nos caricaturas de nós próprios.» Esta lucidez sobre a sociedade que a rodeia, que nos rodeia e consome quotidianamente, é o alfa e o ómega da poesia de Maria Lis que acredita no pensamento mágico das crianças como forma de erguer utopias que podem convocar-nos ou não. E não descura os pensadores, os revolucionários, os filósofos, os que não se ajoelharam ao conformismo ou à alienação dos mercados.
Maria Lis é uma lufada de ar fresco na poesia portuguesa onde se contam pelos dedos os bons poetas, os que olham à volta e não estão de acordo. Aqueles que veem o que é subterrâneo, os que nos querem esconder ou enterrar nas suas grutas os nossos desejos. No fundo, os criadores de novas subjectividades como é esta poesia. Aqui, a colagem de letras e a composição das palavras ganham um sentido que não é só o acaso a criar. Não pode ter sido apenas assim, a técnica muito própria de Maria Lis. Mas é provável que tenha encontrado, neste maravilhoso jogo, algo de surpreendente, qual deriva que a tivesse levado a uma lógica muito singular de um poema. Um jogo em que o pensamento, a letra e a palavra se conjugam. A ideia está lá. Gravada.
Lembrei-me igualmente de Álvaro Lapa: em 2018, encontrava-me no Porto e assisti à maior exposição sobre este autor em Serralves. Sabemos que utilizava comummente as colagens e é interessante verificar o que ele dizia sobre a pintura e a palavra quando se referia a esta técnica. As palavras são de Estrella de Diego e constam do catálogo de «No Tempo Todo» título da exposição: «[a ideia de colagem]: unir partes aparentemente díspares e até contraditórias num todo renovado e capaz de as dotar de uma nova vida em harmonia: capaz até de dar coesão aos opostos e de os integrar numa estrutura inesperada onde propõem significados diferentes. Por vezes, face ao excesso, a escassez agudiza as imagens; torna-as livres, radicais.» (pág.23)