Deriva das Palavras

sábado, novembro 15, 2025

«Peregrinação em Tinker Creek», Annie Dillard

 

Antígona, 2025. Tradução de Inês Dias

Escrito em 1972, quando Annie Dillard contava com 27 anos, «Peregrinação em Tinker Creek» é um livro singular que conta uma experiência pessoal de observação profunda da Natureza, na Pensilvânia e no Maine, EUA. Editado em 1974, é muito difícil classificá-lo. Pelo menos, sabemos que a autora recusa ser considerada ensaísta, o que nos ajuda a entendê-lo um pouco melhor. Sendo igualmente poeta, Annie Dillard convoca-nos para uma leitura encantadora em torno do Natural, uma experiência quase mística, recusando o antropocentrismo e abraçando os inúmeros actores que fazem do mundo aquilo que é, não o que desejaríamos que fosse. E essa experiência torna-se aterradora se virarmos as costas ao Humano e nos embrenharmos na selva de sobrevivência que é este livro e cujo título chama por uma montanha que reparte o nome com um rio: Tinker Creek. É nas suas margens, nas colinas, nas rochas e nas árvores que encontramos uma variedade infindável de fauna e flora e nos deparamos com a conclusão de que todos os seres vivem essencialmente para parasitar outros animais e vegetais e finalmente morrer. Essa profusão e descrição pormenorizada de plantas, de animais, de pequenos e grandes insectos, de fenómenos naturais extremos ou de simples evolução das estações do ano, obrigaram-me a uma demora na leitura que não me é habitual. Muitas vezes tinha de regressar ao parágrafo anterior e, pasme-se, investigar nomes que pela primeira vez li e que desconhecia totalmente o que eram, fossem eles árvores, insectos, plantas, animais ou células microscópicas.

O misticismo que antevemos em Annie Dillard, muito ilustrado por citações da Bíblia é enganador. Por muito paradoxal que seja, identifico a sua escrita e pensamento mais com Nietzsche e com um animismo moderno do que os editores que, na apresentação da autora, lembram Thoreau. A sobrevivência é uma maquinação deste planeta, sejamos presas ou predadores. E qual a sua mensagem essencial? Vivemos com as cicatrizes que temos, todos nós, e não será por acaso que Annie Dillard nos demonstra, com exemplos excruciantes da vida natural, lembrando-nos as marcas no corpo das baleias, tubarões, ursos, etc. ou a morte de uma rã pela sucção das suas entranhas por uma barata-de-água deixando a sua pele incólume; já as cicatrizes dos humanos são maioritariamente escondidas, ausência essa que é descrita como um planeta onde os seres passam a sua vida a praticarem isso mesmo: a esconderem-se uns dos outros. 

Por outro lado, Annie Dillard, ao contrário de Thoreau, não vive isolada. Tem vizinhos, também come carne, anda de automóvel, fuma cigarros, convive nas cidades, não é uma anacoreta ou uma pregadora do deserto, embora os refira em passos do livro. Não é uma moralista da vida natural, mesmo que adivinhemos um amor infinito pela Natureza que descreve como ninguém, pelo menos que eu conheça. Limita-se a observar, a ver, coisa que o capitalismo ainda não proibiu ou que exija pagamento. E é talvez aí que se encontra o segredo da adesão a este livro por parte dos leitores: a franqueza, a verosimilhança e a genuinidade. Acreditamos nela e seguimo-la nas suas experiências.

«Em tudo na vida há sempre a tentação de perder tempo, fazendo amigos, refeições e viagens comezinhas durante anos comezinhos a fio. É tão consciente, parece tão moral, afastarmo-nos simplesmente das brechas onde os rios e os ventos se precipitam, dizendo ''nunca mereci esta graça'', o que até é verdade, e depois amuarmos até ao fim da vida, sempre no limiar da raiva. Recuso-me. O mundo é mais feroz do que isso em todas as direcções, mais perigoso e amargo, mais extravagante e luminoso. Estamos a fazer a faina, quando devíamos erguer Caim ou Lázaro.» (pág.303)

alc