Deriva das Palavras

terça-feira, junho 03, 2025

«Os Sonâmbulos», Hermann Broch

 

Relógio D'Água, 2018. Tradução de António Sousa Ribeiro
Numa entrevista datada de 1962, ao Jornal de Letras e Artes, Mário Cesariny, talvez muito mal-disposto, classifica Hermann Broch como um mau romancista, colocando-o ao lado de um Sade, de um Melville, de um Jünger, de um Proust, de um Kafka, de um Lautréamont, de um Genet e de um Jarry, entre outros. Claro que não poderia faltar um mau poeta para ser comparado a Broch: Fernando Pessoa! Não sei o que diria o autor, falecido em 1951, se se visse comparado a estes nomes, mas no caso dele não me sentiria, de modo algum, frustrado. E Cesariny é um grande poeta. 

Hermann Broch escreveu três romances de uma trilogia a que deu o título geral de «Os Sonâmbulos» constituída  por «1888 - Pasenow ou o romantismo», «1903 - Esch ou a anarquia» e «1918 - Huguenau ou a objectividade». Um período histórico que não é um acaso: situa-se entre a ascensão de Guilherme II até ao final da I Guerra.

Quando chegamos ao fim da trilogia sentimos já alguma nostalgia de não podermos continuar a analisar a verdadeira saga de personagens que povoam e se cruzam nestes três romances. Hermann Broch convive com a técnica da narrativa, juntamente com alguma poesia, considerações pessoais e pensamento disperso. É, talvez, neste último aspecto, que Hermann Broch, talvez contraditoriamente, se encontra mais débil e mais solto. É um pensador humanista, não um filósofo no sentido da criação de uma estrutura lógica de pensamento novo, mas interessante de estudar porque descreve pormenorizadamente e de uma forma magistral as personagens que pontificaram na República de Weimar. Talvez seja por isso que Hanna Arendt o prefaciou postumamente (em vida poucos o conheceram como escritor) e teve igualmente o reconhecimento tardio de Thomas Mann que o comparou a Musil. Estão a verificar este vaivém de considerações póstumas entre um Cesariny e estes últimos. Adiante, que isto vale pouco. 

Hermann Broch dá-nos a sua visão de uma cultura política e social alemã em decadência rápida de valores e de pontos cardeais seguros sobre o império que se esboroa e o fim da I Guerra Mundial. Todo um pathos que vai levar a uma ascensão do nazismo e do totalitarismo que ele conheceu bem, tendo escapado por pouco à morte quando foi aprisionado por aqueles. Talvez por isso, coloque geograficamente o romance na Alsácia, mais concretamente na cidade de Trier, terra natal de Marx, que mudou de mãos variadíssimas vezes entre franceses e alemães. Trier é também Trèves. As personagens são esmiuçadas até ao limite por Broch e é esse facto que mais interage com a cumplicidade do leitor. Nelas vemos um Bertrand cínico, rico, burguês, que esconde a sua homossexualidade maltratando psicologicamente as mulheres com quem se cruza ou que se cruzam com os seus amigos; von Pasenow, militar de carreira apaixonado por uma prostituta, Ruzena, que abandona na pior das misérias, para continuar a casa de família, casando por interesse e que reaparece no terceiro romance completamente derrotado pela inversão de valores que não consegue compreender; Erch, um anarquista que deixa de o ser para abraçar a bíblia evangélica, protestante; Huguenau, um arrivista, desertor, assassino de Erch, que monta o elevador social com um sucesso material e moral imenso. É ele a quem Broch dá um exemplo máximo do que é um protagonista, um actor grandiloquente do totalitarismo.

Dir-me-ão que a descrição desta narrativa é mais do mesmo. Em Hermann Broch, não. O facto de a trilogia ser chamada de «sonâmbula» não é pelo facto destas personagens estarem adormecidas ou num sono hipnótico conforme as circunstâncias políticas, ou fosse do que fosse. É porque mudam consoante os ventos e não lutam para que os factos sejam outros. Não agem. Não produzem ideias que possam transformar em acção, como diria o muito citado Hegel, a quem Broch dá uma primazia especial (também não falta Kant ou Fitche). Há uma personagem, contudo, a que dei talvez demasiada atenção no último romance, aquele em que tudo arde, o mais terrível, em que o fim da guerra se transforma numa revolução, quando da tentativa soviética de 1918: essa personagem é Hanna Werdling. Leitora compulsiva, bela, casada com um marido ausente na guerra, comporta-se como uma espécie de máquina sexualizada quando ele vem de licença, sem qualquer efusão sentimental. Não nutre sensibilidade alguma, talvez um amor distante pelo filho adolescente, mas nem isso a demove de estar distanciada de tudo, de todos, numa enorme casa, cujo jardim a chama constantemente para que observe a mudança única que vê: a da Natureza. A própria natureza mata-a com a gripe «espanhola», também ela uma das epidemias de 1918.

Deixemos Broch dizer ao que vem: «Este romance assenta no pressuposto de que a literatura tem como missão ocupar-se, por um lado, daqueles problemas humanos que são rejeitados pela ciência, por não serem minimamente acessíveis a um tratamento racional e apenas levarem uma vida aparente num jornalismo filosófico moribundo, e, por outro lado, daqueles problemas que a ciência, no seu progresso mais lento, mais exacto, ainda não abarca. O património da literatura, entre o 'já não' e o 'ainda não' da ciência, tornou-se, assim, mais limitado, mas também mais seguro e inclui todo o domínio da experiência irracional, situando-se, mais precisamente, no terreno fronteiriço em que o irracional se manifesta como acto e se torna possível exprimi-lo e representá-lo. Daí resulta a tarefa específica de mostrar como o onírico determina a acção e como acontecer está constantemente pronto a deslizar para o onírico.» (pág.8)

Ler os autores de cultura alemã que descrevem o império e, depois, a República de Weimar é uma lição actual, em que a realidade, tantas vezes analisada por Hermann Broch, se funde com o irracional como demonstra o texto acima. O onírico pode transformar-se rapidamente (mais depressa do que julgamos possível) num pesadelo em que ninguém sai ileso. A resistência queda-se perante o absoluto do totalitarismo, porque há o sonambulismo das massas e, dentro delas, a individualidade pouco mais é do que um arrobo, uma mentira que se vende a quem dá mais por ela, pela subjugação do tal mal de que fala Arendt.

alc

quarta-feira, maio 28, 2025

«Esta Má Fama...», Guy Debord

 

Letra Livre, 2014. Tradução e notas de Júlio Henriques
Talvez um dos mais atacados e vilipendiados membros da Internacional Situacionista, de certeza aquele que mais sofreu na pele as invenções e maquinações que o poder de Estado francês (e não só) exerceu sobre uma pessoa. Guy Debord esteve a pontos de ser detido por assassínio do seu editor Gèrard Lebovici - uma outra história que um dia valerá a pena contar aqui - e isto tudo com a complacência, se não mesmo cumplicidade do poder mediático, da direita, obviamente, e de uma certa esquerda estatista que perdeu totalmente a vergonha perante a ignomínia do que disseram sobre ele: ''agente secreto ao serviço de interesses inconfessáveis, talvez americano ou talvez «soviético», avençado por um cunhado antiquário de Hong Kong, excepcionalmente rico que induziu estrategicamente o poder político a reforçar o seu poder, um homem que organizou as maiores violências do Maio de 68 incluindo as pichagens mais criativas (talvez haja alguma verdade, mas seria muito para um homem só), estalinista, nazi, um profeta ferido na sua deriva utópica, um tipo de gostos requintados comparando-o ao Cardeal de Retz de quem imitava a escrita''. 

Acredito que é necessária muita imaginação para o insulto e a ofensa e para inventar factos totalmente falsos como este pequeno livro demonstra em defesa do próprio. E assim numas meras 96 páginas ficamos cientes do papel vergonhoso a que se prestaram aqueles que, não lendo, como é fácil de observar, «A Sociedade do Espectáculo» ou, mais tarde, os seus «Comentários...» atacaram o homem, não sem saírem completamente ridicularizados na desmontagem dessa tentativa por Guy Debord. Estão lá todos os nomes. 

«(...) Nunca detestei os ricos pelo simples motivo de o poderem ser. Bastava-lhes saberem-se comportar com tacto suficiente; e com bastante estilo. Não teria eu sido muito mais censurável se a riqueza deste ou daquele indivíduo tivesse parecido impressionar-me? se lhe tivesse dado a pensar que podia influenciar-me por causa desse único detalhe? Ou que podia simplesmente falar comigo num tom mais alto? Creio que eles viram que não. Seja como for, nunca pensei de outra maneira, e agi em consequência como devia. Nunca fui rico; e também nunca tive de reconhecer-me como alguém necessariamente pobre. Nunca nada estava garantido. ''O tempo dos gonzos'', para o dizer em termos shakespearianos, e desta vez era verdadeiramente por toda a parte: na sociedade, na arte, na economia, na própria maneira de pensar e de sentir a vida. Já nada tinha medida. Acima de tudo, fui alguém desses tempos, mas sem partilhar as suas ilusões. Gabo-me de ter sobretudo raciocinado segundo o princípio que diz: ''A cavalo dado, não se olha o dente.'' Pratiquei o potlach com grandeza bastante para me não inquietarem algumas delicadezas excessivas.» (pág.58)

Sendo mais avisado ler os livros teóricos de Debord sobre a sua análise do mundo que há-de vir, deixo-vos este pequeno extracto extremamente visionário, escrito em 1993:

««(...) Por todo o lado, a especulação, para concluir, tornou-se a parte soberana de toda a propriedade. Autogoverna-se mais ou menos, segundo as preponderâncias locais, à volta das bolsas, dos estados ou das máfias, federando-se todos numa espécie de democracia das elites da especulação. O resto é miséria. Por toda a parte o excesso de simulacro explodiu como Chernobil, e por toda a parte a morte se espalhou tão depressa e tão maciçamente como a desordem. Já nada funciona, e já não se acredita em nada.» (pág.80)

Debord, doente, suicida-se um ano depois destas palavras premonitórias ainda os Calígulas e os Neros contemporâneos não tinham chegado ao poder e a mentira instalar-se em «toda a parte».


alc

quinta-feira, maio 22, 2025

«Enclave», Maria Lis

 

Língua Morta. Outubro de 2024. Fotografias de Ana Filipa Correia
Sendo o prometido devido, eis a ficha de «Enclave» de Maria Lis, poesia inquieta, não classificável (e por que o haveria de ser?), incomodada, mas paradoxalmente suave.

As crianças não são brandas, nem doces. Por vezes, são cruéis tal como nos diz o lugar-comum e o pobre do Golding. Maria Lis parece querer protegê-las dos seus diversos «encarregados» porque há sempre um encarregado, um prefeito que vela por nós, que nos limita os desejos, que nos ordena as regras, um director que domina o sonho infantil: «As palavras difíceis precisam de um encarregado» (pág.9). 

A proposta poética é, também ela, a da invisibilidade, uma constante em «Enclave»: «A invisibilidade começa por ser um poder precioso» (pág.17). Mesmo que algumas crianças tapem os seus olhos quando de lhes pede para se esconder. O não ver, o não querer ver, o não tolerar estar aqui. Ou fugir nos tejadilhos dos comboios em linha recta, sem destino, ou numa eterna planície desértica sem fim:

«A criança que não manda
gira o corpo ao redor de si mesmo
e vê os comboios cumprirem a rota
que o dono decidiu.»
(pág.36)

No tejadilho de um comboio em andamento «um tejadilho passa a ser um lugar / onde a lei não vinga» sentimos o vento na cara e nos cabelos, no corpo aberto em equilíbrio, com os Apaches e Geronimo acompanhando-nos em ritos estranhos e em cavalos alados. Seja o que for este sonho constante de fugir até ao momento do embate, um dos momentos mais empolgantes dos versos de Maria Lis neste «Enclave»: «(...) estamos sempre desprevenidos / no momento do embate.» (pág.42) Perceberemos melhor se tivermos o livro à mão e o entendermos como um todo, juntando, inclusive poemas soltos. Arrisco:

«Não nos queremos ter de pé
porque o corpo cede
e todos os planos para a revolução
foram ficando para trás
    mesmo aqueles que eram ponto a ponto
    escandidos em etapas claras
    sustentados pela evidência
    de ser para todos»
(pág.41)

«Da ideia de um todos
tantos foram sendo deixados

que risco da agenda
as alíneas do pacto de deus de Abraão
e do dicionário
a entrada que descreve os eleitos
e de todos os tomos d'O Capital
risco a palavra proletariado.

Não existe fatalidade para as leis económicas
nem um devir
nem quem se encarregue
nem advento
nem dialéctica interna do capitalismo
nem proporcionalidade
nem maturação da classe explorada
estaremos sempre desprevenidos
no memento do embate.»
(pág.42)

«Estaremos sempre desprevenidos no momento do embate», mesmo quando estivemos prestes a conseguir sair do onírico das utopias e continuar a deslocar-nos para o abafado e sufocante concreto.

E este devir selvagem das crianças e dos revolucionários apodera-se, numa metáfora extraordinária, de Geronimo numa fotografia de 1886, cansados de uma fuga constante, encostados aos carris da Southern Pacific, no Texas:

«(...) A última rendição de Geronimo
dá-se no mesmo ano, não sem que o governador de Sonora
se tenha antes espantado pelos 500 ou 600 civis mortos
                                                                    ou pilhados
por 16 dos seus guerrilheiros, em dois ou três meses.»
(pág.49)

Todas as possibilidades se abrem, portanto, mesmo contando com a exaustão mortal de Geronimo e o abandono dos seus. Ou, então, a possibilidade, a dúvida, de 

«(...) como durante a construção da muralha da China: 
sem dúvida devem existir brechas
que não foram absolutamente cobertas.»
(pág.89)

Torna-se logo evidente que nos poemas seguintes a solução preconizada face à muralha assente na reinvenção moderna do trabalho escravo é «... fazê-la cair de vez.» Tal como os muros do México que os sucessivos presidentes americanos ergueram em milhares de quilómetros, tal como as crianças indostânicas que entrelaçam os fios das nossas camisolas. De qualquer modo, este «Enclave» tenta sair da redoma imposta das nações, das fronteiras, dos papéis, como escreve Maria Lis. É um enclave em expansão, movimento do universo que tem um «destino» para amanhã se, entretanto, os adultos não perderem «a sua incapacidade de magia» de que as crianças são portadoras.

Cita Benjamin, certeira. Do seu suicídio, nos Pirenéus, com uma overdose de morfina, enquanto aguardava a deportação com outros judeus junta os seus poemas a uma frase póstuma:

«Num dos seus escritos
publicados postumamente
define o capitalismo
enquanto um culto 'sem sonho nem piedade'
religião 'da ostentação de toda a pompa sacral
e do empenho extremo do adorador'
onde os 'dias de trabalho e de culto'
indistintos
partilham nave e altar.

Então um mundo onde a culpa
se sobrepõe à esperança, à redenção
e o Éden se apresenta como uma grande loja
onde a brisa de um ar condicionado
de tão previsível
não causa arrepio à pele
(...)»
(pág.131)

Depois de lembrar Fra Angelico, é impossível não pensarmos no anjo do desespero de Heiner Müller e do anjo amedrontado de Klee ao ver o mundo destruído: 

«Sabem que não há anjos a evocar / ninguém, nem homens, nem animais / que desçam àquela terra / para algum alívio / e que o corpo iluminado / tem necessariamente / sombras do lado oposto a esse / onde a luz cai.» 

Já não há anjos, nem no desespero do mundo. É possível que já tenham abandonado o tal Éden e sejam tão mortais como nós; mas descer em qual terra? Em que fronteira pedir-lhe-ão a identificação? Só explodindo o enclave. Seja.

alc

segunda-feira, maio 19, 2025

Solução na Dissolução?

A formação de um partido da esquerda radical é tão arrebatador como a sua própria dissolução. Principalmente, quando este deixou de o ser. A construção do novo é a única hipótese legítima. O maior problema dessa esquerda é que fez, como Fausto, um pacto com Keynes que a amoleceu, tirou-lhe as verdadeiras perspectivas de mudança para um mundo novo, diferente, que valesse a pena ser vivido em comum.

alc

sexta-feira, maio 16, 2025

«Turbulenta Forma», Maria Lis

 

Língua Morta, Novembro de 2023, ilustrações da autora
Do que conheço de Maria Lis são os dois livros que tenho comigo e que a Língua Morta editou. Este, «Turbulenta Forma», de 2023 e o mais recente «Enclave» da mesma editora. Prepara-se outro, «Hortus Conclusus», segundo o Ípsilon de 31 de Janeiro deste ano, a quem Maria Lis deu uma entrevista, fazendo notar que se sente desconfortável quer com este tipo de exposição, quer com os festivais literários. Diz o óbvio: os livros que edita, é ela. Tão só.

Estava para escrever sobre os dois já publicados, nesta pequena ficha. Contudo, foi-me impossível fazê-lo porque este livro causou-me uma viva impressão. «Enclave» ficará, pois, para uma próxima oportunidade que vai ser muito em breve, porque não os larguei. Estão na mochila.

O livro é composto sobre papel quadriculado com palavras em colagens e ilustrações da própria Maria Lis. Antes que me debruce sobre um outro poema que vos quero expôr, o que é sempre subjectivo, como sabeis, retiro dois excertos que me acompanham desde sempre e que me obrigam muitas vezes a consultar. 

A experiência da colagem e o conceito de «détournement», traduzido por Júlio Henriques por «desvio» e que a Internacional Situacionista deu a conhecer como um dos símbolos mais importante do movimento e que a veio recuperar artisticamente não sem antes citar o movimento Dada, a anterior Internacional Letrista e o Surrealismo, este último alvo de bastantes críticas por parte da Internacional. Diz a IS, logo no seu número inaugural, em 1958, que a definição situacionista de «desvio» é esta:

«Emprega-se como abreviação da seguinte fórmula: desvio de elementos estéticos pré-fabricados. Integração de produções artísticas actuais ou antigas numa construção superior (...)» (Internacional Situacionista - Antologia» Antígona, 1997). A poesia de Maria Lis, não seguirá esta linha que é anacrónica, fora de um tempo em que se tentou a decomposição, ou o desvio, se quiserem, de uma sociedade que, nos anos 50 e 60, transformava tudo em mercadoria, em consumo, inclusive as relações pessoais, chamando para si e absorvendo os subordinados e os explorados. O resultado está à vista: o inferno mora ao lado porque ninguém os parou. É interessante verificar, todavia, o que Maria Lis, no Ípsilon, afirma: «O capital é muito acrobático a apoderar-se das nossas ideias, da nossa personagem. Com muita facilidade tornamo-nos caricaturas de nós próprios.» Esta lucidez sobre a sociedade que a rodeia, que nos rodeia e consome quotidianamente, é o alfa e o ómega da poesia de Maria Lis que acredita no pensamento mágico das crianças como forma de erguer utopias que podem convocar-nos ou não. E não descura os pensadores, os revolucionários, os filósofos, os que não se ajoelharam ao conformismo ou à alienação dos mercados.

Maria Lis é uma lufada de ar fresco na poesia portuguesa onde se contam pelos dedos os bons poetas, os que olham à volta e não estão de acordo. Aqueles que veem o que é subterrâneo, os que nos querem esconder ou enterrar nas suas grutas os nossos desejos. No fundo, os criadores de novas subjectividades como é esta poesia. Aqui, a colagem de letras e a composição das palavras ganham um sentido que não é só o acaso a criar. Não pode ter sido apenas assim, a técnica muito própria de Maria Lis. Mas é provável que tenha encontrado, neste maravilhoso jogo, algo de surpreendente, qual deriva que a tivesse levado a uma lógica muito singular de um poema. Um jogo em que o pensamento, a letra e a palavra se conjugam. A ideia está lá. Gravada.  

Lembrei-me igualmente de Álvaro Lapa: em 2018, encontrava-me no Porto e assisti à maior exposição sobre este autor em Serralves. Sabemos que utilizava comummente as colagens e é interessante verificar o que ele dizia sobre a pintura e a palavra quando se referia a esta técnica. As palavras são de Estrella de Diego e constam do catálogo de «No Tempo Todo» título da exposição: «[a ideia de colagem]: unir partes aparentemente díspares e até contraditórias num todo renovado e capaz de as dotar de uma nova vida em harmonia: capaz até de dar coesão aos opostos e de os integrar numa estrutura inesperada onde propõem significados diferentes. Por vezes, face ao excesso, a escassez agudiza as imagens; torna-as livres, radicais.» (pág.23)

A poesia de Maria Lis, neste «Turbulenta Forma» é claramente livre e radical. Harmonia em fogo lento.

segunda-feira, maio 12, 2025

«Tóquio Express», Seicho Matsumoto

 

Presença, 2025. Tradução do japonês de André Pinto Teixeira
Um policial japonês por dia, nem sabe o bem que lhe fazia! Dizem que Seicho Matsumoto é a Agatha Christie do Japão e este livro uma «obra-prima». O que não se compreende é que, mesmo escrito originalmente em 1958, tenha sido banido «por ter ideias ocidentais decadentes», segundo o Financial Times. Nós exportamos decadência aos molhos, está visto, os japoneses suicidam-se aos pares nos chamados «suicídios de amantes» tema central desta obra. O autor não nos engana sobre este fenómeno muito nipónico: 

«A ideia de que um homem e uma mulher encontrados nos braços um do outro devam ser considerados amantes suicidas quase dá vontade de rir. No entanto, desde tempos imemoriais que milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado, sem que ninguém suspeitasse de qualquer prática criminosa. Quando a morte é vista como um suicídio de amantes, a investigação criminal do incidente nunca é tão exaustiva como em casos de homicídio. Mal há uma investigação digna de tal nome.» (pág.181) Chamo-vos a atenção para as expressões «desde tempos imemoriais» e de «Milhares e milhares de casais foram encontrados nesse estado [de suicídio].» Como o caso interage com uma grande corrupção num ministério japonês ficamos, igualmente, a saber que quando são apanhados nessas teias os funcionários também se suicidam, atirando-se pela janela fora de um qualquer arranha-céus. Não saberemos, portanto, quem ficará para contar a história, mas Matsumoto não é muito original: os corruptos de cima safam-se e até melhoram o seu estatuto político em cargos de maior prestígio em remodelações governamentais para esconder esses tais casos e o mexilhão suicida-se, embora neste caso houvesse mesmo assassinato, visto que estamos num policial muito cerebral, para rimar. Estamos, pois, no final dos anos 50, cujos mistérios ainda são revelados pela intuição e dedução. Aqui não há tiros, nem câmaras de vigilância, drones, ou localizadores gps em telemóveis. Também não há escutas ou satélites. 

Contudo, há imensos horários de comboios por todo o Japão, visto que os assassinos se fazem mover por este transporte em horários cruzados e estudados ao pormenor para construírem um forte álibi. Quando se dá o suicídio, aliás, assassinato, os perpetradores têm de estar no outro lado do Japão. Fácil. No entanto, os polícias descobrem tudo no final, e nós muito antes, visto que a Editora, por excesso de zelo, nos dá a pista. Se até às páginas 150 (do total de 191!) ficamos a saber que se movem em diferentes comboios e num ferry, obrigando-nos a estar com enorme atenção à lógica das viagens, a Editora, não se sabe porquê faz este aviso: «Nota da obra original: os horários dos comboios e aviões referidos têm como base o ano de 1957»! Ora, ainda não se tinha falado em aviões na trama da história do crime. Faltando ainda 40 páginas para o fim percebemos que o assassino apanhou um avião da gloriosa Japan Airlines!! Certíssimo. Obrigado, Presença! 

alc

quinta-feira, maio 08, 2025

«Kairos», Jenny Erpenbeck

 

Relógio D'Água, Dezembro de 2024. Tradução de António Sousa Ribeiro
Ainda não entendi a razão pela qual uma boa escritora terá de ser «uma aposta segura para um futuro Prémio Nobel», isto segundo o respeitável «The Guardian» seguido da não menos respeitável editora que o cita na contracapa. É que existem exemplos tramados de nobelizáveis, digamos assim.

Jenny Erpenbeck é, sem dúvida, uma escritora singular, que nos remete para vivências que têm em comum com uma plêiade de obras que vieram do antigo leste europeu, neste caso da ex-RDA, onde viveu a sua juventude até à queda do Muro. Não sendo uma Herta Müller, é muito consistente e não cai em lugares-comuns que nós, nas chamadas democracias ocidentais, estaremos à espera. As descrições, por vezes longas e pormenorizadas, da sua vida que partilha com um apparatchick da cultura (não sem que tenha passado uns meses na Juventude Hitleriana, durante o final da guerra), trinta e quatro anos mais velho que ela, e, por ele, conhece as obras de Brecht, de Heiner Müller ou Berghaus. A personagem Katharina estuda cenografia e projecta palcos para ópera, para o teatro e para concertos musicais, nomeadamente no Conservatório de Eisler. É interessante relacionar a sua actividade profissional com a construção e manutenção do regime alemão do leste, onde é descrita a encenação total de uma sociedade que se encontrava exausta. Katharina distancia-se dessa política, não lhe interessa sequer analisá-la, mas não é uma sonâmbula. Está viva, claudica várias vezes na sua relação, traia-a, mas está sob a sua completa alçada. Não consegue sair dela e é essa tensão que atravessa todo o «Kairos» que, como sabemos, é definido como o tempo oportuno, bem diferente do cronológico. Por fim afasta-se.

Metáfora interessante é a vida de Hans, de quem Katharina depende em todos os planos da vida. Ela tem 20 e repete incessantemente que o ama. No entanto, esse amor é tão obsessivo quanto é exigido pelo Estado: toda a sociedade, as instituições, os empregos, a cultura, o dinheiro, os apartamentos, dão o que lhes é dado em obediência. É nesse sentido que há uma relação sado-masoquista entre Hans e Katharina. «O exame exaustivo das ruínas» é o que faz esta personagem nas suas viagens quer, inclusive, ao ocidente, quer à Alemanha Federal, a Colónia, quer à parte ocidental de Berlim ou aos países Bálticos. A comparação é inevitável com a RFA, principalmente após a queda do Muro, mas não do modo que esperaríamos. Descreve-nos, antes, os comunicados da oposição a Honnecker, que pretendiam aprofundar o socialismo e negava o capitalismo, enquanto a Stasi proibia os termos «glasnost» ou «perestroika». Depois de se sentir atónita pelos cidadãos da RDA não terem direito a manifestar-se sobre a Constituição federal que lhes foi imposta, após as ondas de desemprego, da destruição de um estado que lhes vendia o pão a 7 pfeniggs enquanto um casaco custava 700 marcos, uma inflação descontrolada, a fome a instalar-se e o sentimento de vergonha, quando o Muro foi aberto e a RFA oferecia 100 marcos a cada visitante oriental, por um só dia, para se comprar qualquer coisa! 

«(...) O despertar que pouco antes estava ainda em contradição com a ordem existente no Leste não tarda a tornar-se em contradição com a ordem do Ocidente que aí vem.
Pessoas que, no Inverno e no início da Primavera, viveram o êxtase da emancipação têm agora, em vez de forjar projectos inéditos, de estudar os diários do governo da Alemanha Ocidental.
Deveriam, em vez de discutir quem há-de agora dirigir este ou aquele departamento, esta ou aquela brigada, apurar o que é uma SARL ou como é o direito das fundações oeste-alemão. (...)
Aprenderam na escola o que significa a propriedade privada dos meios de produção, o que significa uma sociedade funcionar segundo os princípios da economia de mercado, mas nunca relacionaram isso consigo mesmos. Para que as instituições e, assim, os seus postos de trabalho sobrevivessem ao Outono, teriam, elas, as pessoas correspondentes, de ter um passado diferente do que têm, teriam de ser diferentes do que são, teriam de passar a ser o que não são.
Tudo isso que deveriam fazer, elas não sabem, não querem, não está em seu poder.» (pág.290)

«(...) Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais. Será que, porventura, também ela não tardará a ser apenas clientela?» (pág.288)

Entrar no mundo de Katharina é descobrir uma outra dimensão. Não geográfica, nem só política, nem apenas social. É estarmos com ela e tentar compreender as suas contradições, que provavelmente serão igualmente as nossas e é o que faz este livro ser interessante, porque somos obrigados a um exercício de desconstrução/construção psicológica enquanto a História de assenhora do seu destino, sendo ela um peão que resiste em sê-lo. Não sabemos se ganha este jogo.

alc

terça-feira, abril 29, 2025

"Lavores de Ana", Ana Cláudia Santos

 

Companhia das Letras, Março de 2025

«Lavores de Ana», não deixará ninguém indiferente o que, por si só e perante a anemia da literatura portuguesa contemporânea, é uma mais-valia. Mas este livro é muito mais do que isso. É um livro corajoso, extremamente bem escrito e que nos interpela directamente, sejamos nós quem formos ou julgamos ser. Sinceramente, nunca esperei um livro com esta dose de frontalidade e, paradoxalmente, de subtileza como a que demonstra a autora e mesmo que nos avise, já num final em forma de quase apoteose, deste livro que guardarei sempre: «Poderia ser a minha história.» Provavelmente não o será. É, pois, a história de «Ana, Anna, Annarella, Annarè...» que divide a sua vida jovem (a autora nasceu em 1984), de uma geração que se foi daqui para fora, entre Lisboa e Nápoles, entre o sul de Portugal e o de Itália. Ana atravessa a quadrícula de Nápoles connosco, traduzindo-nos os dialectos, apresentando-nos os seus desejos, vivendo no bairro de Sanitá, levando-nos a Sorrento de Vespa com os seus amores Enzo e depois Marco que ela julga serem eternos e cuja separação se torna fácil. Espantosamente fácil. Muito mais tarde volta a Nápoles e custa-lhe reconhecê-la com a gentrificação: «Estamos constantemente em locomoção...» e a quantidade de turistas cansa-a, rendidos também à «febre Ferrante».

Ana luta contra a solidão de um trabalho contínuo de tradução (Ana Cláudia Santos é igualmente uma tradutora literária, que reconhecerão facilmente), de teses de mestrado e de doutoramento, dá aulas de português para italianos e convive com napolitanos, sejam eles, ou elas, de classes diferentes o que nos dá uma visão social muito verosímil do romance. Mas também nos conta a História de Nápoles lembrando-nos a frase de Goethe «Vedi Napoli e poi muori.», os pátios dos palazzos onde tudo acontece, ou aconteceu desde o século V a.C., aquela Neapolis que alguns gregos tiveram a ousadia de criar uma nova cidade ao lado de Partenope, o nome de uma das três sereias que se suicidaram por Ulisses as ter ouvido. Os gregos ganharam a cidade aos etruscos pouco dados a militarismos e amantes da cultura, sabemos no que estas coisas dão.

Ana, aos 40 anos, pensa ser mãe, não por qualquer necessidade social, religiosa ou reprodutora imposta, e descobre a possibilidade de não pode ter filhos. A parte IV, «Sopro», do livro (tem cinco capítulos) constitui as páginas mais belas e inquietantes do livro, porque é uma das interpelações mais pessoais que a personagem nos acomete directamente, a nós, leitores: 

«Se uma mulher diz ao mundo que está a tentar engravidar, e o tempo passa e nada acontece, em torno dela conjectura-se. Pensa-se que, não havendo concepção, haverá alguma coisa nela que não funciona bem. Nesse aspecto, não reina no mundo a falta de imaginação. Presume-se que será por ela ter muito ou pouco peso; por trabalhar demais; por fumar; por beber demasiado álcool ou demasiado café; por não dormir o suficiente; por não tentar o suficiente; por não querer realmente. Será dos óvulos, do útero, das trompas? Será a Mãe Natureza, na sua sabedoria recôndita, a fazer uma selecção secreta para impedir que aquela mulher venha a ser uma mãe defeituosa? Que haverá nas entranhas dela, nas profundezas do seu corpo, que obste à concepção?» (pág.98)

Impossível esquecer a forma como Ana Cláudia Santos nos permite sentir Nápoles como ela no-la apresenta: «Por vezes, penso que Nápoles foi a única coisa que me aconteceu. No entanto, o resto da minha vida e os meus diários desmentem-no.» Há duas estadias longas nesta cidade e a autora despede-se dela numa quase apoteose, que eu referi logo no início, muito difícil de encontrar na literatura contemporânea que eu conheça. Passa-se na Baia de Sorgeto:

«Há qualquer coisa na águas deste sítio. Dizem que são ricas em minerais, que rejuvenescem e possuem propriedades curativas. A mim, excitam-me profundamente. Sentamo-nos no minúsculo molhe, em mornos degraus de pedra, absorvendo a energia geotermal. Numa zona mais abrigada, debaixo da rocha, cobrimos o rosto e o peito com uma lama verde, que depois lavamos na água. (...) Estendo-me numa pedra morna e viro a cabeça para o mar. Atrás de mim, as rochas escarpadas desenham a enseada. Por instantes, fez-se silêncio, calam-se as vozes dos banhistas, o marulhar das águas é imperceptível. Tomo consciência do meu corpo e da minha respiração, relaxo e alongo a musculatura, que redescubro, sólida, consistente. Ílio, ísquio, púbis. Os pequenos ossos do pavimento pélvico. Deixo-me deslizar da pedra para a água, que me envolve em ondas suavíssimas. Sou mais do que um corpo.» (pág.120) 

Li este livro num só dia. Lá fora, um apagão. E esta cena, como outras descritas desta forma tão intensa, fizeram-me recordar o que Ana Cláudia Santos nos propôs numa Itália em películas a preto e branco com uma Sophia Loren ou Ingrid Bergman no sopé do Vesúvio, ou um Benedetto Croce, ou um Goethe, ou ainda, sob responsabilidade minha, de Susan Sontag. 

Depois de o ler aconselho vivamente ouvir-se a Suite nº4 de Handel, aplicando a teoria da deriva vasculhando excertos do livro. Não o abandonem logo.

alc

segunda-feira, abril 28, 2025

"Os que não caem como Ícaro", Catarina Costa

 

Companhia das Ilhas, 2025
Em 2013, tive a felicidade de editar Catarina Costa com o seu "Dos Espaços Confinados", na Deriva. A experiência foi das mais gratificantes que senti como editor, não sem que percebesse que a autora, e muito certeiramente, recusava a exposição mediático-festivaleira do meio. Pressenti que estava perante uma poeta. Introspectiva, reflexiva, sólida. Segui-lhe, intermitente, os passos entre o romance e a poesia. 

Este é um extraordinário livro de poesia. Só posso garantir-vos assim dito, porque não gosto muito de utilizar adjectivos vãos. Não o largo tão cedo e acompanha-me na mochila. Aconselho-vos a fazer o mesmo, a adquiri-lo, a lê-lo sem concessões. Não o sublinhem, porque podem subsumir expressões e poemas adjacentes. Tomem o poema como um todo porque só assim terá sentido. Marquem, talvez, a página daquele a que voltarão sempre. Como este:

"Refreia a pulsão para embelezar o que decai
capta com objectividade cada esquina, 
cada casa, cada rosto que desce pelo tempo,
regista-os sem idealismo
antes que sejam subitamente aniquilados 
ficando os seus retratos a pender póstumos
num teatro de enganos, 
antecipa a necessidade de provas 
depurada de enfeites, 
não encenes, 
grava as silhuetas dos corpos a definhar
em que o único sombreamento
seja dado pelo ângulo da carne declinante 

não embelezes, 
tudo pode ser arrasado 
quando menos se espera 
expondo a carcaça artificial dos ornamentos

antecipa, 
que não te falte a profecia do dilúvio 
para saberes que deve ser fiel
a homenagem às coisas condenadas"

"Que não te falte a profecia", pág.7

Ou este ainda:

"Trágicos são os que não caem como Ícaro, 
os que caem sem nunca se terem podido elevar 
mais do que um palmo acima da terra, 
os que sucumbem desasados 
a uma só estocada rente à superfície 
antes de poderem arranjar cera de abelhas
e penas de pássaros para construir as asas 
que derreterão durante o voo
ao aproximarem-se em demasia do Sol
na ignição extática do aniquilamento 

que os que tiverem de cair ao menos caiam
desde as alturas e não desde as planuras
e chegando ao cimo possam ver
o quanto subiram pela vontade e engenho
e quão elevado é o ponto a partir do qual se desce

que ao menos sintam sobre o dorso despido 
e indefeso, quase carcaça, a tombar contra a terra 
o precipitado adejo de uma asas simuladas"

"Os que não caem como Ícaro", pág.33

Catarina Costa nasceu em Coimbra em 1985. Publicou o seu primeiro livro em 2008, "Marcas de Urze". Colaborou em várias revistas de poesia. Tem já uma bibliografia significativa embora discreta. É uma das maiores poetas actuais e seria importante que a seguissem com muito mais atenção. 

alc



quarta-feira, abril 23, 2025

«Trilogia da Cidade de K.» Agota Kristof

 

Relógio D'Água, 2021. Tradução de António Gonçalves
«Eu nunca terei paz!», afirma Lucas no primeiro livro desta trilogia intitulado «O Caderno Grande». Segue-se «A Prova» e «A Terceira Mentira» escritos pela húngara Agota Kristof falecida em 2011, na Suíça. Já editada em Portugal em 1986 é, contudo, a partir de 2000 que alcança alguma notoriedade entre nós pelas editoras Asa, Nós e Cavalo de Ferro. Esta tradução é revista por António Gonçalves, pela Relógio D'Água e junta os três livros antes editados separadamente com o nome de «Trilogia da Cidade de K.» o que terá toda a lógica visto que fazem parte do que a autora entendia ser uma saga que narra a «trilogia dos gémeos».

Voltemos à frase de Lucas «Eu nunca terei paz!» num dos muitos diálogos desenvolvidos pelas personagens que se vão revezando numa espécie de vertigem teatral onde temos dificuldade em distinguir o real do imaginário. Essa densidade vai tornando-se mais opaca quando transitamos a leitura entre os livros. Entre a opacidade psicológica das personagens, principalmente de Mathias e de Lucas (nomes de evangelistas que, creio, não existirem por acaso), os gémeos, dá lugar a uma abertura extraordinária, quase de revelação última, se a autora assim o quisesse. Contudo, volta-se a entrar e a sair de zonas sombrias para uma pura iluminação pessoal. É um livro fortemente impressivo que impõe uma opção clara entre o mal e o bem, mesmo sabendo que se cruzam, que interagem entre si, que todas as personagens do livro, algumas delas decisivas, trazem essa passagem, promovem um ciclo intransponível de actos que se sucedem e se revelam muito para além dessa dicotomia. A crueldade elevada ao extremo, a rudeza de quem já viu tudo, de quem não pode acreditar, de todo, na humanidade encontram-se com a disponibilidade solidária, com o amor, com o desejo, com a preocupação desinteressada com o outro. É evidente que estamos perante um clássico da literatura. 

Sabe-se pouco, sobre a vida de Agota Kristof (Ágota Kristóf, com a acentuação e grafia originais). Pelo menos sobre o que pesquisei e encontrei. Esta trilogia, que recomendo a todos lerem, inicia-se antes da II Guerra Mundial, atravessa-a; aliás, os húngaros atravessam-na com dois exércitos de ocupação antes e depois da guerra e sofrem com esse movimento quase tectónico de mortes, fome em extremo, vinganças, armas, soldados, abusos, mudanças obrigatórias, fugas permanentes para todo o lado. A zona de fronteira é uma miragem, uma zona tampão, e é lá que os gémeos vivem. Tudo ali se passa num universo concentracionário, vigiado, que os diálogos extremamente contidos entre as personagens nos dão a sentir. No fundo, nada é o que parece, tudo se transforma em coisa má, ou, dentro do mal, arranja-se sempre uma solução onde predomina o auxílio, a partilha e o sentido de comunidade. Não se pense, todavia, que é um livro sobre a guerra. Também o é, visto que a autora não se pode apartar da sua própria vida (nasceu em 1935), mas não se pode esquecer que ela tinha 21 anos em 1956, ano da invasão do Pacto de Varsóvia à Hungria, a primeira grande resistência à burocracia que a morte de Estaline, três anos antes, não modificou. Foi na leva de 200 mil refugiados que abandonaram a Hungria nessa altura, deixando para trás dezenas de milhares de mortos e um país traumatizado, sem entender a repressão sobre operários, camponeses e estudantes que exigiam uma vida melhor e que esse estado não conseguiu sequer equacionar. Com 21 anos acredite-se que não se esquece facilmente uma revolução. Sabemo-lo. A história da trilogia pára no final dos anos 80 após a queda do Muro, sem que Agota Kristof, em determinadas linhas, não dê conta igualmente da desilusão do modo de vida ocidental, demasiado preocupado com o dinheiro e com a solidão. Fica-nos uma espécie de nostalgia por uma vida comunitária de pequenas cidades, de vilas e de aldeias com uma coesão firme, com uma cola social que pensaríamos indestrutível. Não obstante, tudo morreu com o fim dos gémeos e do recomeço de guerras surdas que exigem seguir a sua própria lógica de destruição/reconstrução/repressão. A possível verosimilhança, a realidade que a autora nos propôs é, paradoxalmente, o título do último livro da trilogia: «A Terceira Mentira». Inesquecível.

ps: um obrigado muito especial à Inês Lampreia que me apresentou este livro excepcional.

alc

segunda-feira, abril 14, 2025

«O Triunfo da Morte», Gabriele D'Annunzio

 

Minotauro, 2018. Tradução de Celestino Gomes
Um decadentista romântico tardio como Gabriele D'Annunzio chamava-me, há muito, cada vez que eu ia a uma livraria. «Qualquer dia, leio-o» era um mantra constante quando eu via a lombada de «O Triunfo da Morte». Corto Maltese dizia, através do seu autor, Hugo Pratt, que qualquer dia acabaria de ler «A Utopia» de Thomas More e, que eu saiba, «morreu» sem o conseguir. Também podem pensar: «Mas este tipo só lê fascistas?», embora não haja a certeza que D'Annunzio o seja ou que o número de fascistas que li é ínfimo, mesmo contando com o actual Houellebecq. Portanto, entrar-se-ia numa polémica que não terá aqui lugar, se o autor era ou não um deles. Pouco interessa. O que vale num pequeno artigo sobre este livro é que este autor anunciou claramente o fascismo sem precisar de nomeá-lo, mas pensou-o, delimitou-o ideologicamente, romantizou-o. O livro foi escrito em 1894, quando a demo-liberalismo entrava em decadência absoluta e defende, contudo, a entrada na I Guerra ao lado dos Aliados e a Itália tergiversa: primeiro, ao lado dos alemães e austro-húngaros e depois ao lado dos Aliados durante a própria guerra. Mau augúrio político que vai pagar caro nas conferências de paz. D'Annunzio combateu nas fileiras do exército e em 1918 ataca e ocupa Fiume com um grupo de apaniguados que, mais tarde, Mussolini exalta. Os tratados ignoram as pretensões italianas e Fiume, agora novamente austríaca, cai. O fascismo italiano impõem-se em 1922. O que tem isto a ver com o livro? Tudo.

Nietzsche só é citado uma única vez no início do livro, embora isso nada prove. O filósofo, como sabemos, estava longe de qualquer pretensão política totalitária. No entanto, estranhamente, atribui o conceito de super-homem a Goethe! Giorgio e Ippolita são as personagens. Longe da moral vigente, poder-se-ia dizer que estamos na presença de uma obra que foge aos trâmites burgueses. É certo que sim, mas pelo lado de uma aristocracia que pode, deve, ter o poder total sobre as classes estando acima delas. Apresenta um desprezo total pelas massas, pelo dinheiro, pelo povo, pela religião cristã ou outra qualquer. Até pela racionalização filosófica: «Pensas demais!» dirá Ippolita, em fuga de um casamento falhado e amante de Giorgio que atinge paulatinamente a felicidade na ideia de morte, no pensamento da morte, no espectro da morte. Este odeia o seu pai, um burguês rico mas falido, não encontra paz na família, mas na sua própria individualidade e na violência do seu pensamento: «Era, na vida, como um navio que soltava todas as velas à tempestade». Ou então: «Este homem intelectual, sabe-se lá por que influxo da consciência atávica, não podia renunciar aos sonhos românticos de felicidade. Este homem sagaz, apesar de ter a certeza de que tudo é precário, não podia furtar-se à necessidade de buscar a felicidade na posse de outra criatura. Ele bem sabia que o amor é a maior das tristezas humanas...» 

É assim que ele vê, que sente as outras criaturas: como suas, pertencendo-lhes totalmente para as dispor consoante o seu desejo que está longe do carnal. A mulher é um objecto em nada virtuoso. Sagrado ao princípio, torna-se inútil quando ele se farta, vê-a «como o Inimigo» que o fragiliza na sua virilidade, na sua força intelectual, na possibilidade de vencer o mundo. O povo é visto como uma massa demente, suja, que se arrasta em volta dos ídolos do cristianismo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente para ele, que festeja a força da natureza no arranque da primavera, nas festas paganizadas de uma ruralidade pura, que revivifica a natureza em ciclos dionisíacos. Tal como a guerra. Tal como a morte libertadora. Giorgio sofre agora com a ausência de um chefe condutor que para si foi um seu tio, Demétrio, que se suicida. Ele segue-lhe o rasto. Fá-lo, atirando-se de um precipício e assassinando nesse último voo, Ippolita.

Calha-me dizer que sim: D'Annunzio é um fascista antes do tempo e Mussolini abraçou-o sem que aquele alguma vez tenha aderido ao PNF. Para quê? «O Triunfo da Morte» é um clássico, incontornável e a literatura deu-lhe a possibilidade de evitar qualquer apresentação panfletária de um programa. Mas toda a ideologia fascista está contida em «O Triunfo da Morte». 

Por que razão o li? Por uma questão que me parece ser essencial nos dias que correm: o fascismo contemporâneo aparenta ser pobre ideologicamente e os intelectuais ainda resistem ao seu chamamento, mas os principais pressupostos estão nos seus ódios e que coincidem neste livro de 1894: o povo, essa entidade heterogénea que admite dentro de si uma luta de classes que não terminou, um ódio particular e explícito às mulheres, ao livre arbítrio individual, à liberdade e à paz. Não é Giorgio que diz pela mão de D'Annunzio que perante um povo amorfo, crente, pobre, rastejante é nas cristas das ondas que se vê o poder dos fortes, verdadeira metáfora fascista para o poder das elites? 

Estejamos certos que os tempos estão extremamente perigosos e que a caixa de Pandora da guerra e da arbitrariedade política está aí ao virar da esquina. 

Florença

Florença, um dos pólos culturais mais significativos da chamada civilização ocidental apresenta, orgulhosa e impante, as cenas de violência comuns cá na casa: cacetadas de porrete, facas afiadas, espadas que decepam tudo, olhares desafiantes, raptos e violações de mulheres; Perseu corta a cabeça de Medusa, David contra Golias que o mata e decapita, a vingança sanguinária de Artemisa, Hércules parte a espinha a Centauro, Aquiles jaz morto com Ajax e este a arfar de vingança, as Sabinas sofrem às mãos dos romanos. Lá dentro da Uffizi jazem crucifixos e dor, torturas a Santa Catarina com rodas dentadas, a Santo Estêvão esfolado, a S. Sebastião espetado. E isto não acaba nunca...

Só me resta acalentar a esperança que isto tudo é só reinação para o estrangeiro ver: os budistas do Japão, os xintoístas da China, os lamas do Tibete, os hindus, os ameríndios do norte, os africanos, que pensarão deste tipo de arte degenerada?
E um tipo recua até à Piazza della Signoria e repara que calca uma estela: lê que foi ali que queimaram vivo Savonarola, o tal que durante quatro anos criou uma república cristã onde tudo era proibido, onde se seguiam as leis rígidas das escrituras. Literalmente: fogo!

quarta-feira, março 26, 2025

«A Ideia», 104/105/106

A Ideia, 104/105/106. Outono de 2024. Periodicidade anual

A IDEIA - 104 / 105 / 106
revista de cultura libertária

outono 2024

director: António Cândido Franco

editor gráfico: Luiz Pires dos Reyes

268 páginas

SUMÁRIO DE MATÉRIAS
A. Cândido Franco – Sobre o 25 de Abril – da revolução ao colapso
Beldiabo – Ideias, precisam-se
Manuel da Silva Ramos – Plongée sobre os meus anos de 74 e 75
José do Carmo Francisco – Pranto e lamentação de Joana em 22 versos
Adriano Alcântara – País de partida (trecho final)
Risoleta Pinto Pedro – Os dyanthus caryophyllus
Teresa Ferrer Passos – A luz rompeu a noite
Pedro Ferreira – Da censura ao jogo de interesses
Jorge Leandro Rosa – Simone Weil: o activismo e os trabalhos da alma
Simone Weil – Carta a Georges Bernanos
A. Cândido Franco – Sobre a carta de Simone Weil a G. Bernanos
José Carlos Costa Marques – Pomar na vertente escarpada
Amadeu Baptista – Os dias invisíveis
A IDEIA – Cem anos da rebelião surrealista
Pedro Martins – Camões: antigas e novas andanças da heresia
Nuno Júdice – No centenário do surrealismo
Paulo Jorge Brito e Abreu – Menagem-homenagem a Nuno Júdice
Grupo DeCollage – Por uma nova convocação dos cúmplices
Michaël Lowy – Um manifesto libertário
Paulo Jorge Brito e Abreu – O surrealismo no lance
Manuel Almeida e Sousa – Mandrágora
Pedro Águas – O primeiro dos primeiros poemas
Duas cartas inéditas de Pedro Águas
Penelope Rosemont – Charles Radcliff (1941-2021)
Nicolau Saião – Um voo sobre o surrealismo
José Manuel Rojo – Eugenio Castro (1959-2024)
José Estevão – O estado poético do entomólogo
A IDEIA – José Maria Ferreira de Castro (1898-1974)
Bernard Emery – Murcharam mesmo os cravos da esperança?
Ricardo António Alves – Jaime Brasil e Ferreira de Castro
Mara Rosa – Jaime Brasil (1896-1966)
Jaime Brasil – Postal a Pinto Quartin
Tomás Ibáñez – Carta a Catherine Malabou
La “Oveja negra” de Ana María Matute – Almerinda Pereira
Clandestinos do anarquismo – Sebastian Kalicha
AMGD 102 – Maria Estela Guedes
Quatro pneus furados – Henrique Manuel Bento Fialho
Contestação lúdica da extrema-direita – Henrique Garcia Pereira
Sobre o anarquismo de direita – Jerónimo Leal
Dos nazis a Elon Musk – Irénée Régnauld
Oração II – Maria Estácio Marques
Os impertinentes – Carlos Oliveira Santos


LEITURAS & NOTAS
[Alain Gras, Cassandra Querido, François Jarrigue, João Freire,
José Nuno Lacerda Fonseca, Sebastian Kalicha, Tomás Ibáñez]
BIBLIOGRAFIA
[A. Cândido Franco, João Freire, Paulo Guimarães, Mara Rosa]

[este volume da revista A IDEIA comporta um primeiro suplemento com inéditos em verso & outros achados poéticos de Nunes da Rocha & um segundo de João Freire intitulado Um Futuro Perigoso ideologias, políticas, interesses – num mundo finito & ainda um encaixe em papel IOR de quadradinhos a preto e branco da autoria de Ariana Vitorino com A VIDA DE EMMA GOLDMAN]


 

«Liberne», Júlio do Carmo Gomes

 

Livros Flauta de Luz, 2025. Ilustrações de Rita Faia
Distribuição: Antígona
Um livro mágico, este novo «Liberne» de Júlio do Carmo Gomes. O subtítulo denomina-se «Histórias dos montes baldios» e é fruto de uma longa estadia, em residência artística, em 2021, promovida pela Rural Vivo no Gerês do nosso imaginário. Não é por acaso que escrevo «imaginário», porque a maior parte de nós (que vivemos nas cidades, bastando para ter esta certeza ver a distribuição populacional do recanto) estaremos muito longe da vivência real e mítica do campo, daquela que teimosamente as gentes de lá se agarram ao ancestral, aos velhos costumes dos compartes na organização social e numa auto-produção realista, autónoma. Senti-o, pessoalmente, quando estive três dias na aldeia do Campo do Gerês, durante um festival rural. Foi evidente a minha distância tímida face ao modo como as pessoas vivem o campo, reparar na vida comunitária e várias vezes me dei a pensar como se poderia transpor esta forma de vivência social partilhada, justa, capaz, para uma cidade onde as pessoas mal se conhecem, onde vivem sozinhas, expostas ao frémito urbano e ao oblívio quando velhas, quando a única ligação social que tinham eram os laços do trabalho produtivo para o lucro de alguns. Pensei igualmente num outro livro, este de João Carlos Louçã, «Pensar a Utopia», quando permaneceu nos Pirenéus e nos deu a conhecer também as colectividades urbanas, no Porto, que promovem as trocas justas e as relações humanas nas grandes cidades. «Liberne» obriga-nos igualmente a tecer hipóteses de construir, de optar, perante o vivido pela sua leitura. Apetece fugir daqui, da cidade.

Não se pense, contudo, que a vida rural, assente em milenares hábitos comunitários, não está isenta de regras rígidas. Não é a «liberdade» completamente livre como se pensa nos chamados mitos urbanos. No decorrer da leitura de «Liberne» deparamos com uma justiça ancestral, mas óbvia nas suas regras, quer por quem aplica as leis não-escritas, bem entendido, mas também quem as recebe como multas em que o próprio «réu» também beneficia. Assim se faz a cola social baseada num saber adquirido há muito. A construção de uma base social é definida por todos, que delimitam o que é bom para a comunidade e o que é nocivo, que afastam os que não aceitam as regras e que põem em causa esse cimento de que são feitas muitas das comunidades do Gerês ainda hoje. O excelente conto «A Condena» é disso um exemplo: as regras são rígidas, até violentas, mas capazes de perdoar, de integrar, de absorver o que transvia, talvez a hipótese última de continuar o ancestral ritmo de vida rural comum a todos. O comunitarismo é explicado, em todos os contos, pelo fruir do que lemos com prazer e sem qualquer entrave de suposta matéria pseudo-pedagógica que não é para aqui chamada. 

Em «Laura» estamos perante uma magia pura. Daquela que nos lembra um Rulfo, um García Marquez. Se Júlio do Carmos Gomes escreveu e apurou a sua escrita (este livro não é o seu primeiro, já aqui falámos do seu «Urro») em quatro anos, ou seja, desde 2021, para este livro valeu cada dia. A relação de Laura, a personagem quase banida, com os lobos, esse animal mítico do campo, incompreendido pelos citadinos que abanam a cabeça de assentimento quando os caçadores abatem estes animais como neste momento está a acontecer no estado espanhol, no Xurês galego confinante com o Gerês, e com o beneplácito da UE, é um tríptico inconfundível à individualidade livre, ao mundo partilhado com os animais selvagens e um afastamento claro do cristianismo feito beato que, como sabemos, aproveitou-se de cada ritual «bárbaro» para se integrar melhor nas comunidades e assim abastardar esses mesmos rituais. «Nas terras altas do Gerês, o lobo é o animal fetichizado consagrado ao ritual de luta e sobrevivência com a natureza. É o animal heráldico e sobrenatural, a besta excluída da própria natureza. Forma atávica de o bicho-homem querer, ilusoriamente, humanizar-se e negar a sua própria natureza. A aldeia fica em alvoroço com a descoberta. À boca pequena, o povo aumenta a parada: que Laura não é Laura mas Eufémia, jovem que veio um dia fugida e que ali viveu séculos antes. (...)» (pág.55).

Em «Guardião», Júlio do Carmo Gomes apronta a sua imaginação literária para uma distopia que conseguimos rever tudo aquilo com que as populações do Gerês, alertadas, assustadas e revoltadas contra quem se movem máquinas de extracção das «terras raras», eufemismo trumpista e putinista para uma violência concertada contra o planeta; certamente os ciborgues nos anos 40 do século, que são atacados como forma de resistência das populações a quem foi negado o sossego comunitário. É aí que se destaca o papel das administrações locais, centrais e do Parque do Gerês também ele conluiado com este estado de coisas. Aqui, nestes contos foge-se ao panfletário. Trata-se de um livro de contos estruturado, pensado em cada palavra para ter o efeito desejado pelo autor. Neste «Guardião» o registo literário é de uma grande coerência. Na impossibilidade o colocarmos aqui na sua totalidade apresentamos uma parte do que entendo ser um autêntico manifesto poético do comunitarismo:

«(...) Vem pelo teu próprio pé. Não te apresses pois a sair da encruzilhada. Não te apresses a sair da encruzilhada nem do carreiro ladeado de giestas bravas e de carqueja, fincado pelos pés dos humanos, fincado pela memória de pastores e pastoras, fincado pelos pés dos teus próprios avós, fincado ao longo de séculos por gerações atrás de gerações e que a chuva, o vento e o estio ajudaram a assentar, calcando-o como a pedra antiga da mó moeu o milho que salvou o ano, sulcando o chão que pisas e onde também tu escreves o teu nome e a tua história, homens e mulheres cuja luta ao longo do tempo te abriu a clareira que agora atravessas, por onde agora caminhas e te acrescentas à vida, rendido ao canto que anuncia o crepúsculo, deslumbrado com os pirilampos que cintilam entre os silvedos e pressentindo na obscuridade o rumor que se levanta dos milhares de passos das crianças que desabriram pelos trilhos, consagrando no seu passo miúdo e irrequieto a vida sagrada da infância e fazendo fremir o chão, percorrendo a cangosta sem enxergarem as sombras do mundo (...)» (págs.92,93)

Um livro a não perder, a ler e voltar a ler, pelas expressões, pelas palavras e vocabulário aquilino, uma festa para os sentidos e para os sonhos que ainda permanecem em nós, de um dia podermos viver juntos de seguir os passos de uma república das crianças de que falava Virgílio Martinho ou Raoul Vaneigem. Atenção igualmente às excelentes ilustrações de Rita Faia.

alc